De todos os romances de Virginia Woolf é este o que mais me agrada, por muito que Mrs. Dalloway, publicado dois anos antes, me sugestione, igualmente, como inolvidável. Até por ter dado forma definitiva à técnica do fluxo de consciência aqui potenciada, na mesma oposição clara entre duas formas distintas de interpretar a realidade: a masculina, radiosa e dominadora, e a feminina, fluida na resiliência perante as circunstâncias. Nesse sentido o casal Ramsay corresponde ao decalque dos próprios progenitores da escritora, ele tirânico e ela compassiva.
A estrutura do romance consiste em duas divisões, que Virgínia considerava ficarem ligadas por um corredor. A primeira parte (“A Janela”) passa-se na casa de férias que a família Ramsay tem à beira-mar numa ilha ao largo da Escócia. A Primeira Guerra Mundial está prestes a acontecer a há uma promessa que fica por cumprir: a do passeio até ao farol, que se vislumbra à distância, e motivo de curiosidade dos oito filhos do casal. Se a mãe se entusiasmara com a possibilidade, o pai depressa a desconsiderara, porque o dia seguinte, aprazado para a expedição, seria de chuva intensa.
Passam-se dez anos - é o tal corredor a que Virgínia Woolf dá como título “O Tempo Passa”! - e é feito de numerosos lutos: além de Mrs. Ramsay, um dos filhos sucumbe nas trincheiras e uma das filhas não sobrevive a um parto. A casa de férias esvaziou-se de quem a costumava ocupar como se o universo tivesse ficado mergulhado nas trevas.
Entra-se, então, na outra parte do romance, aquela a que a autora deu o título de “O Farol”. Volta a ser verão, a vida sobrepôs-se à dor pelos que morreram e os sobreviventes regressam à ilha para cumprirem finalmente o passeio planeado com a mãe: “estava tão bela a manhã, à parte de um ou outro sopro da brisa. O mar e o céu pareciam feitos da mesma textura, como se fossem velas suspensas de muito alto, lá no céu, ou que as nuvens tivessem caído no mar”.
Na derradeira página do livro a pintora Lily Briscoe, tia de Mrs. Ramsay, acaba o quadro, há muito encetado, onde representa, de modo não figurativo, a unidade do casal. Ao longo do processo criativo os retratos de Mr. e Mrs. Ramsay tinham-se alterado progressivamente até resultarem nessa definitiva complementaridade dos seus sonhos e consciências.
A realidade dificilmente correspondera a essa harmonia pictórica: quando não estava focado no trabalho, Mr. Ramsay equacionava qual o seu papel no seio da família e quem verdadeiramente era. A defunta esposa, indiscutível protagonista do romance, mesmo quando já só vive na memória de todos, consciencializara a subtil inversão de poder, que fazia o marido dela depender e de dar coerência ao relacionamento entre todos quantos integravam a família.
Lily necessitara do distanciamento do tempo para conseguir juntar marido e mulher no mesmo quadro. Através das recordações a morte é vista em perspetiva, diluindo-se a importância das querelas passadas. E o livro acaba com uma síntese elucidativa assumida pela artista: “Olhou os degraus. Estavam vazios. Olhou a tela. Estava fluida. Com súbita intensidade, como a visse claramente num breve segundo, traçou uma linha no centro. Estava feito, estava acabado. Sim, disse para si mesma, pousando o pincel com um tremendo cansaço. Tive a minha visão.”
Se a estrutura do romance é perfeita, a escrita poética surge desenvolta numa musicalidade não despojada de humor. Os pontos de vista narrativos vão mudando, o estilo indireto muda subtilmente para o direto e vice-versa, e os saltos temporais quase não se notam. A construção da obra de Lily é uma metáfora coincidente com a do próprio romance, como se a escrita replicasse os dilemas das escolhas de cores e as alternâncias entre a luz e a sombra, como eram motivo de discussão e experimentação pelos pintores pós-impressionistas do grupo de Bloomsbury com quem Virgínia Woolf convivia. Um deles, o crítico Clive Bell até se tornara seu cunhado, ao desposas a irmã, Vanessa.
Concluamos com o que simboliza o farol do romance: mais do que a associação fálica, que o romance acaba por desmentir, ele corresponde à luz cintilante, que aponta para a plenitude interior, mesmo quando pesa a sensação de haver uma incontornável ausência.
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