segunda-feira, outubro 12, 2020

(DL) A Leitura como testemunho e como resistência


1. Há livros que apetecem reler depois de nos terem deixado gratas memórias quando os descobrimos num passado já tão remoto, que o situamos noutro milénio. Foi de facto no final do que deixámos para trás, que Carlos Fradique Mendes regressou pela pena de José Eduardo Agualusa no seu Nação Crioula, também nome do navio negreiro, que assume particular relevância no desenrolar da intriga. É nele que o protagonista foge de Luanda para o Brasil acompanhado da bela Ana Olímpia e do amigo Arcénio de Carpo, para escaparem às consequências judiciais pelo falhado homicídio de um crápula, todo feito de defeitos e  nenhumas virtudes.

Para além das aventuras, que conduzem o leitor pelas terras de Angola e do Nordeste brasileiro, com uma ou outra escapadela a Lisboa e a Paris, o romance explora os impasses da sociedade colonial, que rentabilizava-se à conta da mão-de-obra escrava numa altura em que as potências europeias desenhavam as fronteiras de África a régua e esquadro e tinham proclamado ilegítima essa forma de exploração. Se a decrépita coroa lusa pretendia ver reconhecida toda a vastidão das terras situadas nesse costa-a-costa entre o Atlântico e o Índico, no que designou como mapa cor-de-rosa, não havia colonos bastantes para povoá-las e retirar argumentos à ganância britânica, decidida a abocanhar as situadas no meio do continente.

Fradique Mendes torna-se testemunha privilegiada do que está em causa em Angola e no Brasil, tendo por objetivo dar a Ana Olímpia a felicidade possível depois de a ter sabido escrava e depois senhora, voltando a ser escrava por uma daquelas reviravoltas do «destino», que o romantismo tanto explorara mas já tão distante, enquanto estilo literário, do agrado dos seus amigos diletos - Eça de Queirós e o «santo» Antero. Entre 1868, quando chega a Luanda e 1900, data da carta de Ana Olímpia a quem verdadeiramente o criara como personagem, Fradique Mendes é superiormente utilizado por José Eduardo Agualusa para criar um romance que, a coberto das vicissitudes por que passam as personagens nesse passado eivado de contradições, faz refletir sobre as que se vivem no presente.

2. Na mesma semana em que se conheceu a nova contemplada com o Nobel da Literatura, ´uma das suas antecessoras, Svetlana Alexeievitch, está em risco de ser encarcerada devido à corajosa oposição à ditadura no seu país, a Bielorrússia. Ao editor sueco ela pediu que se fizesse o máximo ruído em torno do seu nome para travar as intenções dos esbirros de Lukashenko. O que é um bom motivo para retirar das prateleiras os seus livros dedicados aos que viveram as esperanças e desilusões do regime soviético ou os efeitos da explosão de Tchernobyl. Porque a leitura também pode ser uma forma de resistência contra a opressão. Quanto mais não seja pelas consciências, que pode despertar...

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