Leitor assíduo, e obviamente repetente, dos romances de José Saramago, continuo a ter um prazer inaudito em encontrar-lhe a finura de um humor, que se foi aprimorando com a idade e o avanço da obra.
Exemplo lapidar de oportuna sátira é o momento de As Intermitências da Morte em que ironiza com muitas das conhecidas críticas verberadas insistentemente por gente pacóvia a pretexto das suas escolhas da pontuação ou da sintaxe. A réplica de tal corja aparece-lhe na figura de um gramático que, retomado o normal fluxo de enterros dos defuntos, publica uma análise crítica ao manuscrito enviado pela morte para explicar as razões para ter posto fim à experiência de, durante oito meses, não ter cumprido a missão de levar consigo quem, naturalmente, deveria ter-se finado.
Trocista, o autor acaba por fazer convergir em si a identificação com tal morte: “Segundo a opinião autorizada de um gramático consultado pelo jornal, a morte, simplesmente, não dominava nem sequer os primeiros rudimentos da arte de escrever. Logo a caligrafia, disse ele, é estranhamente irregular, parece que se reuniram ali todos os modos conhecidos, possíveis e aberrantes de traçar as letras do alfabeto latino, como se cada uma delas tivesse sido escrita por uma pessoa diferente, mas isso ainda se perdoaria, ainda poderia ser tomado como defeito menor à vista da sintaxe caótica, da ausência de pontos finais, do não uso de parêntesis absolutamente necessários, da eliminação obsessiva dos parágrafos, da virgulação aos saltinhos e, pecado sem perdão, da intencional e quase diabólica abolição da letra maiúscula, que, imagine-se, chega a ser omitida na própria assinatura da carta e substituída pela minúscula correspondente. Uma vergonha, uma provocação, continuava o gramático, e perguntava, Se a morte, que teve o impagável privilégio de assistir no passado aos maiores génios da literatura, escreve desta maneira, como não o farão amanhã as nossas crianças se lhes dá para imitar semelhante monstruosidade filológica, a pretexto de que, andando a morte por cá há tanto tempo, deverá saber tudo de todos os ramos do conhecimento. E o gramático terminava, Os disparates sintáticos que recheiam a lamentável carta levar-me-iam a pensar que estaríamos perante uma gigantesca e grosseira mistificação se não fosse a tristíssima realidade, a dolorosa evidência de que a terrível ameaça se cumpriu.”
Indiferente aos tontos dislates dos detratores o nosso Nobel ainda teimaria em demonstrar a excelência do seu estilo por mais cinco anos, até que, em 2010, a tal morte do romance veio busca-lo...
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