Olhar para um quadro com a devida atenção, focar-se num dos detalhes e concluir o quanto é revelador sobre a obra do artista e a época em que viveu: esse o propósito da série O Mundo num Quadro de que já conhecêramos outro episódio, dedicado a Vermeer e ao chapéu de um homem por ele representado.
De Caravaggio é escolhido um quadro menos conhecido, hoje pertencente a um museu de Detroit, em que o chiaroscuro está inevitavelmente presente como marca definidora de quem o pintou e tendo por tema a conversão de Maria Madalena: constituindo-se demonstração substantiva do espírito da Contra Reforma vemos a frívola prostituta a ouvir atentamente a explicação da irmã, Marta, sobre quem era Jesus Cristo e a render-se incondicionalmente à sua devoção.
Na mesa, enquadrada em primeiro plano, aparece o pente em marfim, com um dente partido, que é o objeto da análise do documentário de Nicolas Autheman. Porque ele simboliza o passado da convertida ao adivinhar-se-lhe a proveniência: um dos prostíbulos em que ela se dedicava ao meretricio. De facto, em 1598, data da obra, era na noite romana e seus prazeres, que se podiam encontrar objetos exóticos para ali trazidos pelos boémios, bandidos e vagabundos, oriundos de todas as latitudes. E com quem Caravaggio, sempre fascinado pela luxúria e seus excessos, se cruzava.
Não admira que ganhasse má fama ao escolher como modelos quem estava nos mais baixos degraus da escada social e de quem se fazia parceiro das supostas transgressões morais da época. Não espanta assim a sanha com que o tentariam capturar e executar, quando lhe atribuíram a autoria de um homicídio durante uma zaragata.
Provavelmente levado para Roma por um português ali chegado com a embaixada do representante da coroa lusa junto do Vaticano, o pente evidenciava a relação estreita existente entre os reis de Lisboa e do Congo antes da perda da independência em favor dos Filipes. Quando se tratavam de igual para igual com trocas comerciais, que envolviam o precioso marfim...
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