Virginie Surdej, a diretora de fotografia - mais do que a realizadora Maryam Touzani - é o nome que retenho da visão deste filme. Porque foram tantos os fotogramas em que apeteceu parar a ação e apreciar o cuidado caravaggiano com a iluminação, ou a sobriedade na composição dos corpos e objetos como os imaginaria Vermeer, que o regalo estético proporcionado pelas imagens foi constante.
O argumento não deixa de também ser interessante, sobretudo por colidir com os preconceitos tradicionais da sociedade marroquina, aonde temas como o aborto ou o sexo antes do casamento merecem tanta repressão. Por isso mesmo sente-se que a realizadora - baseando-se numa história real passada com a sua própria família, que acolheu da rua uma rapariga grávida de sete meses e a apoiou até ao nascimento da criança - tratou o assunto com pinças por não ser-lhe fácil evitar abordagem demasiado afastada do discurso político (ainda) dominante.
Temos então o encontro entre duas mulheres entregues a si mesmas, a primeira para educar a filha de oito anos enquanto mantém à tona uma modesta pastelaria de bairro, a segunda para dar à luz aquele filho concebido depois de uma relação clandestina com quem depois a repudiou.
Abla, a anfitriã, é uma viúva rendida a um luto monástico, que inclui o nunca mais permitir a presença da música no dia-a-dia. E, no entanto, tanto admirara a cantora argelina Warda al-Jazairia, que dera à filha o seu nome!
Pelo contrário Samia está ansiosa por ultrapassar este período entre parêntesis da sua vida combatendo o instinto maternal e ansiando por novo ciclo com o regresso à aldeia natal depois de entregar o filho para adoção. E, no entanto, é ela quem - apesar de ilustrar a mais óbvia rutura com os bons usos e costumes ditados pela sociedade - conserva a competência para cozinhar a muito apreciada rziza, que potencia o sucesso comercial da pastelaria. Como se, apesar de quase todos se revelarem fora do prazo de validade, alguns legados ancestrais mereçam ser preservados.
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