Vale a pena voltar ao mais recente ensaio de Boris Cyrulnik - Le laboureur et les mangeurs de vent - para ver explicadas as condições em que descobriu algo depois escalpelizado ao longo da sua vasta experiência como neurologista ou psiquiatra: a possibilidade dos lobos abdicarem da sua condição predadora tão-só se alterem as condições em que, antes, o podiam ser. O espírito de alcateia, que norteia muitos dos comedores de vento do título do livro, esvai-se quando se confrontam com as manipulações de que foram objeto e os fizeram voluntários servidores de uma narrativa mentirosa. Porque, como Cyrulnik atesta, quem uiva com os lobos acaba por sentir-se lobo participando ativamente em genocídios, mesmo tratando-se de gente medíocre na forma como interpreta e executa aquilo que Hanna Arendt qualificou de banalidade do mal.
De leitura estimulante o ensaio incita-nos a refletir nas propostas do autor para que sejamos, tanto quanto possível, esse laboureur, que não se conforma com o pensamento dominante e ousa retirar as próprias conclusões do que vê, ouve ou lê. Mesmo arriscando-se a ficar isolado num contexto em que quase todos os demais parecem convergir para conclusões, que não são as suas.
Fica aqui a tradução das primeiras páginas do livro:
Quando foram derrotados, os terríveis super-homens transformaram-se em companheiros agradáveis. Eu tinha 7 anos quando testemunhei essa metamorfose.
Em 1941, o exército alemão entrou vencedor em Bordeaux. Maravilhoso! Desfile impecável, o alinhamento de capacetes e armas deu a impressão de poder irresistível. A beleza dos cavalos arreados com penas vermelhas, a música guerreira, os tambores hipnotizantes davam a sensação de força formidável. À minha volta as pessoas choravam.
Após quatro anos de ocupação, prisões nas ruas, incursões matinais, proibições e patrulhas, os alemães refugiaram-se em Castillon-la-Bataille. Ocuparam a vila, colocaram sentinelas nos pontos de observação e ergueram barreiras nas entradas. Os combatentes da resistência, comunistas e gaullistas, cercaram-nos. Em 1944, o oficial sabia que o nazismo perdera a guerra e qualquer luta só poderia causar mortes desnecessárias. Baixou as armas para proteger os seus homens. As palavras que ouvi significavam "render-se", na linguagem quotidiana: "Ach... a guerra!" E o capitão assinou. De um dia para o outro os temíveis super-homens transformaram-se em gentis camponeses. Quando se renderam, vi milhares de soldados maltrapilhos a marcharem em fila indiana, vigiados por uma dúzia de crianças mal armadas que os enfileiraram na praça do vilarejo. Os super-homens sujos, barbudos e desabotoados olharam para o chão e sentaram-se inertes, sem dizerem palavra.
Assinado o armistício, os orgulhosos soldados tornaram-se "prisioneiros de guerra" e despiram as fardas para trabalharem com os camponeses que os abrigavam. Cuidavam das vinhas e dos animais, brincavam com os transeuntes. Acenavam para as crianças, diziam palavras em francês ou alemão. Em suma vi esses homens a sorrirem e a colherem as frutas que não conseguíamos alcançar.
Uma simples frase, "acabou a guerra", algumas palavras num papel com assinatura, foram suficientes para transformar mentalidades. Deixámos de ter medo dos alemães. Os resistentes impediam que fossem alvos de insultos ou cuspidelas, pedindo aos agressores franceses que mostrassem alguma dignidade. Na minha cabeça de criança, achava possível odiar, matar e, de súbito, mudar de mentalidade. Uma palavra era suficiente para ver o mundo de forma diferente.
É na infância que colocamos os problemas fundamentais com os quais vivemos as nossas vidas. É com a idade que descobrimos que bastam duas ou três palavras para estruturar uma existência.
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