quarta-feira, março 30, 2022

«As Intermitências da Morte», José Saramago, 2005

 

Que prazer imenso o de regressarmos aos bem conhecidos romances de Saramago depois de, em tempos, com outra maturidade, os absorvermos com a mesma pressa com que consumíamos outros bens culturais. Agora que a parca já não demorará muito a tolher-nos o caminho, lemos com outra lentidão o que merece ser apreciado com delongas para atermo-nos nas reflexões, que o autor disseminou enquanto pareceu connosco dialogar ora comentando o seguimento das intrigas, ora até a sua verosimilhança.

Em ano de centenário a todos os títulos de Saramago pretendemos voltar, embora a extensão da obra prolongue o esforço para além do aprazado 16 de novembro em que o autor cumpriria redondo aniversário. Por agora estamos a concluir esta história decorrida num país imaginário, mas com dez milhões de habitantes, onde a morte deixou de ceifar vidas a partir de 1 de janeiro. E, se no «Ensaio sobre a Cegueira» era a doença que a (quase) todos limitava, ou no «Ensaio sobre a Lucidez» a votação em branco, que aos políticos desconcertava, aqui surge a singular imortalidade - e todos os inconvenientes práticos, que se lhe associam! - a virar de pantanas o equilíbrio social com o governo incapaz de corresponder aos problemas que, a prazo, se sabe irresolúveis. Mormente os da anunciada falência da Segurança Social.

Vale-lhe que a morte decide pôr fim às inesperadas férias, regressando quando já havia uma maphia a lucrar com o transporte dos moribundos até à fronteira, providenciando-lhes o desenlace tão só cruzada essa linha. Mas, nem mesmo assim, os vivos se livram de grandes inquietações com a morte, porque a sabem doravante anunciável, com oito dias de antecedência, através de envelope cor de violeta, dando-lhes apenas tempo para lavrarem testamento e organizarem o que o desaparecimento súbito deixaria desarranjado.

Quando julgaríamos retomado o equilíbrio perdido com o incipit (“No dia seguinte ninguém morreu”) é a própria morte a ficar confrontada com inesperada dificuldade: um violoncelista escusa-se a morrer, dele sempre vindo devolvida a carta fatal. E mais não vale a pena adiantar porque, enquanto spoiler, tiraria a piada de prosseguir a descoberta desta história até ao seu final. 

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