quarta-feira, março 09, 2022

Brasas e cinzas

 

1. Pode um primeiro amor influenciar a identidade de alguém a tal ponto, que o inspirará a escolher o nome por que se queira tornar conhecido? A resposta a essa questão está no que sucedeu ao jovem suíço Frédéric Sauser, cujo pai fartou-se da tendência para a preguiça enviando-o para Moscovo em 1902 para estagiar com um amigo, aí a exercer o ofício de relojoeiro. O rapaz encantou-se pela grande cidade russa e, sobretudo, pela bela Hélène Kleinmann a quem deu aulas de francês e lhe motivou a primeira paixão assolapada. De regresso a Neuchatel escreveu-lhe cartas ardentes, mas depressa deixaram de ter resposta, por ela morrer tragicamente, queimada viva num incêndio provocado por um candeeiro a óleo. Inspirado pela tragédia, ele escolheu o pseudónimo que, literariamente, o consagrou: Blaise Cendrars, que remete para as brasas e as cinzas desse episódio real.

De Moscovo ele trouxe, igualmente, a capacidade para tudo mistificar, sendo pouco crível que tenha feito a viagem de transiberiano, sobre a qual escreveu conhecido poema, que seria um dos grandes momentos literários das vésperas da Primeira Guerra, onde se alistou como voluntário e onde perdeu parte do braço direito.

2. No mesmo ano em que Cendrars chegou a Moscovo uma enorme tragédia afetou uma ilha das Caraíbas, a Martinica, onde a explosão do vulcão Pélée arrasou a cidade de Saint Pierre fazendo mais de trinta mil mortos.

Curiosamente, da única vez em que estive nessa ilha, já lá vão trinta e cinco anos, nem sequer dei por essa montanha que, porém, domina toda a ilha. De Fort-de-France, a cidade a que o «Funchal» aportou numa das suas viagens, ficou a ideia de me sentir numa qualquer cidade de província gaulesa sem quase atentar no seu lado crioulo, só verdadeiramente discernível ao afastar-me do centro e explorando a periferia.

Olhando em perspetiva para os muitos sítios, que a vida profissional, me permitiu conhecer, fica-me a noção de ter-me para eles preparado tão mal, que perdi muitos dos seus mais interessantes aspetos, de que só a posteriori, vim a saber.

3. O mesmo terá sucedido com a existência de Frineia, a bela cortesã do século IV a.C., que costumava incendiar os ímpetos dos aristocratas atenienses quando, com eles, se cruzava ao passear-se pela Agora, que amiúde visitei nos seis meses vividos em Pireu, nos arredores da capital, que costumava visitar ao fim-de-semana. Terá sido um dos antigos amantes, despeitado, por já não lhe aceder aos encantos, que a terá levado a tribunal acusando-a de organizar cultos a deusas estrangeiras para que cooptava outras mulheres.

Em risco de ser condenada à morte por juízes que, quase todos, tinham sido, ou ainda eram seus clientes, ela despiu-se da parte de cima deixando boquiabertos os que assistiam ao julgamento. E assim ficou demonstrado que uma imagem vale por muitas palavras da mais vibrante oratória porque impôs-se a ideia de inquestionável inocência para quem igualava em beleza a celebrada Afrodite. E assim nasceu um episódio da mitologia grega, que inspiraria tantos poetas do Romantismo europeu.



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