terça-feira, novembro 15, 2022

Coisas Vistas: entre um bocejo existencialista e os sonhos à margem do consumismo capitalista

 

Ateu sem preocupações metafísicas, nunca me interessaram os romances de Vergílio Ferreira apesar de, invariavelmente entediado, ter lido uns quantos, mormente Aparição, que quis agora recordar servindo-me do filme de Fernando Vendrell como muleta. Reconfirmei, assim, esse desinteresse pela obra e pelo existencialismo em geral - quer na forma lusa, quer na mais glosada, a francesa, com Sartre a servir de exceção, porque viria a sair das angústias umbiguistas para se comprometer nas lutas políticas do seu tempo.

Apesar de contar com um elenco de gente respeitável, mormente alguns atores vistos em tantas peças da saudosa Cornucópia (sobretudo enquanto a tal metafísica não levou Luís Miguel Cintra a dá-la como morta e enterrada!), o filme depressa incita  a prolongado bocejo: há a Évora parada no tempo nos anos 50 e as filhas do doutor Moura, que se frustram, ou vitimam, com as desilusões amorosas, mas Alberto Soares, o alter ego  do romancista ilude-se numa falsa irreverência que, focalizada nos grandes princípios, nada vê das contradições sociais à sua volta. Arrastando-se pelos corredores do liceu, pelos cafés e pelas salas de estar das casas para que vai sendo convidado, esse protagonista mantém esfíngica impassibilidade, mantendo-se roda mandada onde faria todo o sentido constituir-se em roda mandante...

 

Dos filmes, que ainda não chegaram a este cantinho ocidental, mas suscitam algum interesse, Stars at Noon de Claire Denis deverá ser um dos mais estranhos por ter alguma afinidade com um dos mais admiráveis filmes de David Lynch: Mulholland Drive.

Passado numa Nicarágua, que já quase nada tem da esperançosa revolução sandinista, focaliza-se numa protagonista, Trish, que procura vencer os constrangimentos da pandemia e voltar à realidade norte-americana, embora sem os imprescindíveis documentos para cruzar a respetiva fronteira. Na prática estamos perante a recriação da Alice de Lewis Carroll, caída numa caótica sucessão de sonhos fragmentários, com interlocutores estranhos, se não mesmo misteriosos, e com o dilema de, sozinha, fazer tangível o objetivo, mesmo  perdendo quem - Daniel -, entretanto, lhe serviu de suporte afetivo.

A exemplo da história do oitocentista inglês os personagens estão numa contínua azáfama sem consciência de quase não conseguirem sair do seu lugar, ao viverem na instabilidade de, a qualquer momento, tombarem em abismos porventura piores.

Embora mal-amado pela crítica francesa, que o deu como intragável, o filme de Claire Denis pode significar que o totalitário capitalismo ainda não conseguiu imiscuir-se nos nossos sonhos, por enquanto incólumes às mais exacerbadas regras do consumismo. 




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