domingo, janeiro 21, 2024

Histórias Exemplares (I)

 

1. O primeiro dos filósofos, Tales de Mileto, era um homem tão distraído, que passeava-se pelos campos sem atender ao sítio onde punha os pés. Foi assim que, num nesses dias de íntimas elucubrações, caiu num poço de onde não se salvaria não fosse a providência de uma escrava, que lhe acompanhava os movimentos, porventura já imaginando os riscos em que incorria.

Se ponderarmos na metáfora do poço, enquanto portal para uma realidade mais profunda, não há, porém, que estranhar essa singular atração do pensador pelas profundas variantes da realidade.

2. Grande foi a deceção de Pablo Picasso, quando conheceu enfim a casa, absolutamente convencional, de Nathalie Sarraute que, em palavras ditas, mas sobretudo escritas sob a égide do nouveau roman, ela descrevia como se de castelo ou palácio se tratasse.

Estranho foi que o pintor de Guernica acreditasse no estrito significado da descrição, esquecendo o quanto a realidade que, para uns, é prosaica, consegue ser idealizada por quem a vê enriquecida pela magia dos sentimentos...

3. Pode-se fazer o belo com o que feio é? Eis uma questão pertinente, quando se olha para a fotografia tirada por Tom Hegen oitocentos metros acima do lago Searles na Califórnia. Desse leito seco extraem-se minerais para as indústrias, uma atividade poluente, porém traduzida num quadro em tons magenta com contornos indefinidos num fundo bege-esbranquiçado.

Se se ampliar a imagem começam a ver-se estradas, canalizações, hangares, que permitem uma melhor compreensão do que vemos. As zonas brancas são depósitos de sal, que rodeiam as bacias de extração donde potentes bombas retiram o fluxo de minerais com a ajuda da injeção de uma bactéria responsável pela tal cor magenta. Esse fluxo é depois encaminhado para refinação numa fábrica química ali adjacente. Vidro, detergentes ou componentes eletrónicos são as linhas de produção para onde são enviados esses minerais.

Captada na perpendicular a imagem não tem relevo, nem perspetiva, lembrando  obras de Nicolas de Stäel, Mark Rothko ou mesmo Piet Mondrian. Se o lago Searles lhe pareceu o mais triste, que alguma vez vira, Tom Hegen tornou-o belo sem o motivar um propósito político, porque assume interessar-lhe o que possa ser comercializado sem estados de alma complementares.

As imagens ampliadas a partir do céu tornaram-se comuns desde o início deste milénio, quando a tecnologia as facilitou, logo ganhando popularidade junto de quem as considerou esteticamente interessantes.

O que justifica outra questão não menos paradoxal: até que ponto o estético pode ignorar o significado político do que toma por tema, sobretudo se - como é este o caso! - está em causa um crime ecológico. Fará sentido falar de um “tóxico sublime”?

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