Quem olha para os filmes com Cary Grant dificilmente adivinha a personalidade sombria, que se escondia por trás da aparente bonomia. Por isso mesmo, quando rodou um documentário a ele dedicado, o britânico Mark Kidel intitulou-o «Cary Grant do outro lado do espelho» (2017), dando conta de um porfiado trabalho de investigação, dado o retratado sempre se ter escusado a falar da sua vida privada. Mas pôde consultar uma autobiografia, que o próprio Archibald Leach - nome verdadeiro do ator - escrevera e se mantém inédita.
Uma das estórias mais deliciosas relativas ao ator é ter dito que “todos podiam ser Cary Grant e, até ele, gostaria de o ser”. Forma elegante de se dissociar do pseudónimo, que era criação a ele estranha, porque longamente inventada. Mas esse mal-estar vinha da infância em Bristol junto de uma família pobre, que lhe incutiu não poucos traumas só aliviados, quando experimentou o LSD nos anos sessenta alcançando então a “alma profunda” através de contraditórias recordações, que explicaram as frustradas ligações amorosas e a impossibilidade em ser feliz.
Antes de nascer Archie tivera um irmão, que morrera na sequência de um acidente doméstico pelo qual a mãe muito se culpabilizou. Perturbada, vestia-o de menina e deixava-lhe crescer os cabelos, potenciando a ambiguidade sexual, que o futuro tenderia a explorar-lhe quer na tela, quer fora dela. Um dia, quando tinha nove anos, Archie chegou da escola e a mãe já não estava em casa, supostamente por ter ido passar uma temporada no litoral. O sofrimento de se ter sentido por ela rejeitado levá-lo-ia a não confiar nas mulheres, sempre temeroso de ver-se por elas abandonado.
Depois foi o pai quem partiu para viver com outra mulher, deixando-o à guarda de uma avó, que poucos meios tinha para o alimentar, não lhe compensando a fome com eventuais mimos.
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