quarta-feira, novembro 17, 2021

Passados rememorados ou recriados

 

1. Cá em casa também entrámos no ano do centenário de José Saramago. O plano é dedicar-lhe diariamente a leitura de uma dúzia de páginas, revisitando-lhe os livros voltando a com eles muito aprender, porque não conheço quem revelasse tal capacidade para, no meio de um parágrafo, inserir uma daquelas frases espantosas de imprescindível e imediata reflexão.

Ao acaso, peguei no primeiro livro, que me veio à mão e foi «Pequenas Memórias» o escolhido para encetar o projeto. E assim nos vimos devolvidos à infância do escritor na Azinhaga, com o Almonda à beira da casa onde nasceu, e o Tejo a passar perto dali. E às divagações solitárias entre as duas margens de um e de outro com noites passadas ao relento, quando tardava o regresso a casa pela distância a que deixara a rapariga atrás de cujos favores corria.

Uma constatação imediata é incontornável: o tempo tudo muda, quase nada deixa igual. Até os olivais desse distante passado foram deitados abaixo, as raízes das árvores arrancadas por imposição das instituições europeias, ficando os milharais a cobrir as charnecas sem garantirem as protetoras moradas aos lagartos.

Estão-nos prometidas muitas e saborosas horas de boa leitura da autoria de quem tanto mereceu o Nobel.

2. Quem ainda o não recebeu foi Haruki Murakami, muito embora o seu nome compareça, ano após ano, nos primeiros lugares das casas de apostas. Dele li excelente conto - «Charlie Parker plays Bossa Nova» - que atenuou o meu ceticismo quanto ao merecimento do prestigiado prémio.

A história passa-se em três tempos. No primeiro o narrador escreve um texto para uma publicação universitária, na forma de uma crítica musical, mas sobre um disco que nunca existiu: Bird teria saído de longo eremitério para, acompanhado de Tom Jobim ao piano, interpretar alguns dos mais consagrados temas do movimento artístico brasileiro, então no auge do seu sucesso internacional. Isso ter-se-ia passado em 1963 e qualquer parkeriano compreenderia tratar-se de uma liberdade criativa, porque o saxofonista morrera oito anos antes, quando nem sequer chegara aos 35 anos.

Anos depois, numa obscura casa de discos de Nova Iorque, o narrador encontra o disco com o nome por si inventado e logo conclui tratar-se da fraude de algum engraçadinho, que não vale a pena o preço absurdo por ele perdido. Porém, no dia seguinte, vai procura-lo, decidido a comprá-lo, e já não o encontra. Como de costume no universo literário do escritor, a realidade factual entrelaça-se numa outra, alternativa, com que tem difusa fronteira.

E há o terceiro momento, aquele em que, passados mais alguns anos, tem um sonho muito intenso em que Bird aparece-lhe a interpretar a sua versão de «Corcovado». Em interligação com referências da experiência, colhida anos antes, na casa de discos de Nova Iorque.

Imaginativo, mesmo que glosando muitos dos territórios ficcionais percorridos anteriormente por Murakami, o conto consegue demonstrar em doze páginas como os textos curtos podem aproximar-se da perfeição. 

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