quinta-feira, dezembro 03, 2020

(DIM) Reinventar o film noir: Chinatown, Roman Polanski, 1974

 

Regressar ao filme de Polanski equivale a trazer à memória mais um bom cinema de Lisboa, onde a programação da autoria de Lauro António era garantia de qualidade, mas depressa fechado, quando as televisões ganharam cor e mais canais, afastando muitos espectadores das salas, condenando-as ao desaparecimento. No caso deste filme lembro-me de vê-lo quando se estreou no Apolo 70 ali muito perto do Campo Pequeno.

O que então vi nada se assemelha ao hoje retido na já não sei que enésima vez que o revisitei. Se há quarenta e muitos anos ficou-me o enredo de film noir ao jeito dos anos 70, agora há muito mais a realçar-lhe. Porque, de facto, não se trata apenas da história de um detetive cansado com as histórias de alcova, que sempre lhe destinam os clientes, porque se vê inesperadamente confrontado com algo muito mais exigente do que conseguem esclarecer as suas atónitas meninges. Há um corpo num depósito de água doce, mas com os pulmões cheios de água salgada, um desvio clandestino das poucas águas disponíveis para onde elas não são precisas para que campos sequem e os arruinados proprietários as vendam por tuta e  meia a quem depois os desenvolvam em seu proveito e já com as mesmas águas regressados aos seus antigos leitos. E um sórdido personagem com o perverso prazer de estuprar a filha e depois a neta resultante desse crime. Era esta a apreciação do filme quando o vi pela primeira vez, mas escapava-me quanto Los Angeles era apresentada, tão esclerosada, tão desumanizada.

Naquele que foi o último filme de Polanski rodado em solo norte-americano ele despediu-se daquela que fora sua casa durante uns anos e traçou-lhe um retrato impiedoso, não enjeitando sequer aparecer como repugnante vilão, que a imprensa não tardaria em assim o apresentar quando o acusou de um crime sexual mal esclarecido ao fim de tantos anos.

Polanski reformula os códigos do cinema clássico extraindo-lhes uma perspetiva misteriosa e profunda. O tempo decorre como matéria maleável em que depressa se expõem os crimes e agressões, mas mais importa à câmara a busca do invisível. Que aqui são as relações de poder entre quem tem dinheiro e quer muito mais, contando para tal com a cumplicidade dos que deveriam policiar e controlar a distribuição de águas por todo o vale. Bem como as relações de poder de um pai para com uma filha e uma neta, que foram e serão suas vítimas.

Embora radicando-se nas influências do film noir, Polanski homenageia John Ford na forma como expõe as grandes extensões desérticas, que por ele tinham sido tão maravilhosamente reveladas. E John Huston é outro homenageado - e não só por fazer de supervilão do filme - porque reteve as lições por ele ministradas nos filmes que realizou: ser eficaz na forma de gerir as variações rítmicas da narrativa.

Neste seu filme Polanski não denuncia a injustiça nem o irremediável, limitando-se ao papel de observador consciente dos seus limites. Chinatown não é nenhum fresco grandiloquente porque o  trabalho de Polanski consiste em ir à procura do humano que quer compreender a morte, quase a captura, mas  deixa-a escapar. 

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