terça-feira, março 24, 2020

(DL) Um Meursault capaz de escapar à Justiça dos homens


Estamos a viver dias em que Albert Camus é frequentemente recordado por ter escrito um romance ajustado aos tempos presentes - A Peste - mas prefiro regressar a outro dos seus títulos, A Morte Feliz, conhecido postumamente ainda que escrito antes de O Estrangeiro de que constitui uma prévia versão. Também nele Mersault é um assassino, mas capaz de escapar á justiça dos homens, porque denota maior habilidade do que o posterior homónimo.
A vítima é Zagreus, um inválido sem pernas, o único dos amantes que Marthe anuíra em confessar-lhe ter tido, antes de com ele iniciar turbulento namoro, e a quem passara a visitar antes de decidir-se a despejar nele os tiros de um revólver. Vingava-se assim da datilógrafa que, apesar de lhe dar o prazer de se passear a seu lado pelas ruas de Argel, afiançar não sentir amor por ele.
A exemplo do que acontecia na versão mais conhecida, a mãe de Meursault morrera-lhe após dez anos de padecimentos com a doença, embora pior lhe parecesse a solidão. E é no quarto por ela ocupado num primeiro andar por cima do talho de carne de cavalo, que ele habita sempre revoltado por ver-se obrigado a ocupar oito horas diárias no seu emprego num escritório.
Após o homicídio, que fizera aparentar de suicídio, Meursault atravessa o Mediterrâneo, escrevendo uma carta a Marthe informando-a da rutura da efémera ligação que com ela estabelecera. Quando ela lhe responde já não o encontra nessa nova morada de Lyon, porque partira, entretanto, para Praga.  As viagens, que depois o levam a Breslau, Viena ou Génova não o sossegam: subsiste nele um mal estar, que lhe motiva o regresso a Argel, albergando-se na casa de três amigas, duas delas a formarem um casal pouco convencional para a época. Mas Mersault usufrui com gosto o terraço com vista para a cidade.
Trata-se de breve poiso: quando abandona a «Casa diante do mundo» arranja uma outra onde conta viver com a nova parceira: Lucienne. Mas logo se transfere para uma aldeia junto ao mar onde sente a saúde a declinar. Quer Lucienne, quer as três breves colocatárias vêm visitá-lo mas é o médico, Bernard, quem se torna no seu melhor amigo.
Quando Meursault morre tem Lucienne a velá-lo, mas a maior cumplicidade é com Zagreus, aquele que matara e a quem espera reencontrar quando for ao encontro dos astros impassíveis.

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