sexta-feira, março 20, 2020

(DIM) O Silêncio dos Outros


Em 21 de setembro de 1936 os habitantes de Pedro Bernardo (pequena aldeia em Ávila) foram buscar a mãe de Maria Martin, raparam-lhe o cabelo, passearam-na pelas ruas e levaram-na até à vala onde a despiram e mataram. O marido ainda tentou recuperar-lhe o corpo e enterra-la como mandavam as suas convicções, mas os vizinhos ameaçaram-no de sofrer o mesmo destino que a «comuna» da mulher se sequer tentasse. Enquanto viveu ele sempre pediu à filha, Maria Martin, que fizesse o que ele não conseguira e juntasse os ossos da mãe aos seus no cemitério.
Durante toda a vida Maria Martin foi deixando regularmente um ramo de flores à beira da estrada, construída junto ao sítio onde a progenitora fora fuzilada, mas descobriu sem surpresa, que ele depressa desaparecia. Morrendo em 2014 nunca veria satisfeita a promessa feita ao pai e confiada aos realizadores deste documentário, que lhe ouviram o testemunho nos primeiros dos seis anos da sua rodagem. Embora uma das filhas lhe tenha agarrado no testemunho e prosseguisse com a missão.
Este é apenas um dos exemplos abordados por Almudena Carracedo e Robert Bahar para dar corpo ao exercício de memória representado pelo seu filme. Porque, quase por unanimidade, o parlamento espanhol aprovou em outubro de 1977 uma Lei da Amnistia, também chamada Pacto de Esquecimento, que impõe a impossibilidade de se investigarem os crimes cometidos pelo franquismo durante os trinta e muitos anos, que durou.
Por exemplo um jovem torturado, violentamente durante duas semanas na sinistra prisão da polícia política situada nas Porta do Sol, continua a viver a poucos metros do seu carrasco, quase cinquenta anos depois, comprovando a impunidade com que ele continuou a viver desde então. E se se interrogarem os jovens nessa mesma praça madrilena sobre o ali sucedido naquele prédio, quase nenhum sabe a resposta, porque os livros escolares fazem-nos ignorar tudo quanto aconteceu durante a ditadura.
E, no entanto, a Espanha continua manchada pelo sangue de muitos milhares de assassinados, cujos corpos se acumulam em valas comuns por identificar. Qualquer tentativa para dar satisfação à vontade das famílias em reaverem-lhes os despojos, e conferirem-lhes sepultura digna, esbarra na oposição férrea do aparelho judicial, intocado pela Democracia e onde se acoita uma maioria de juízes agarrados a essa nefanda Lei da Amnistia.
Para contornarem esse tenaz obstáculo os que buscam a Justiça procuraram-na Argentina onde uma juíza corajosa iniciou processos contra os torturadores ainda vivos, imputando-lhes os imprescritíveis crimes contra a Humanidade. El Chato teve assim a satisfação de ver o seu torturador exposto na televisão, procurando escapar às câmaras dos repórteres. E as mães que, nesse mesmo período negro, viram-se espoliadas dos filhos, dados como mortos, para serem entregues a famílias ligadas ao regime, também agarraram a boleia dessa Querela Argentina e processaram os médicos e as freiras coniventes com essa prática terrível.
Quando o documentário acaba está-se em 2018 e a situação parece ter caído num impasse com os juízes espanhóis a manterem incólume a fortaleza atrás da qual se acoitam. Mas a dinâmica recente dos acontecimentos tende a dar satisfação aos que teimam em ver a História devidamente esclarecida e divulgada junto das novas gerações. Assim se compreende o carácter simbólico da retirada do corpo do ditador do Vale dos Caídos, monumento fascista, que importa sujeitar a uma requalificação arquitetónica de forma a servir de espaço de denúncia dos crimes que lhe estiveram na origem.
E prosseguindo na lógica simbólica dos monumentos, que dizer do monumento às vítimas do fascismo, que o escultor Francisco Cedenilla implantou no topo das montanhas sobre  o vale de Jerte? No mesmo dia em que as quatro estátuas foram montadas alguém disparou contra elas vários tiros. O escultor considerou que, só depois dessa agressão cobarde, é que o seu trabalho escultórico estava completo.
Produzindo este documentário os irmãos Almodovar possibilitaram a existência de um testemunho fundamental para que os compatriotas possam conhecer melhor o que foi a história espanhola nos últimos oitenta anos...

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