quinta-feira, março 12, 2020

Diário de Leituras: As noites de Ava Gardner, viagens na galáxia e o amarelo na Idade Média


1. Em 1958, quando começou a imaginar a personagem que Anita Ekberg interpretaria em La Dolce Vita, Federico Fellini não estaria propriamente a pensar na atriz sueca para a célebre cena na Fonte de Trevi. Amigo de Giuseppe Rotunno, diretor de fotografia de tantos dos seus filmes, terá sabido da sua boca os desvarios de Ava Gardner na noite romana, quando ali estivera por essa altura a rodar La Maja Desnuda, uma coprodução italo-americana dirigida por Henry Koster.
Provavelmente o imaginativo Federico terá ponderado na possibilidade de convocar a atriz para se representar a ela própria nessa celebração à vida, mas estando a contas com uma acelerada degradação do visual, que lhe chegara a merecer o epíteto de «mais belo animal do mundo», Ava recolhera-se a Espanha e aí procurava disfarçar os estragos causados no rosto por um acidente quando praticava equitação.
É essa uma das revelações ficcionais (ou não, porque sabemos sempre fluido o fio separador entre a verdade e a lenda!), inseridas por Thierry Froger no romance Les Nuits d’Ava, cuja leitura anda a ser por estes dias um dos meus mais gratos prazeres. Mas andando ainda pelas primeiras oitenta páginas adivinho outras interessantes descobertas nas que me faltam descobrir. É que anda igualmente por essas páginas um tal Gustave Courbet a cumprir a encomenda feita por Khalil-Bey, o endinheirado diplomata otomano desejoso de ter do banho diário na banheira da casa de banho a excitante visualização da mais desejada parte anatómica da amante.
Trata-se, pois, de uma leitura que promete...
2. Outro romance em fase de leitura - este já na reta final! - é Nascidos nas Estrelas de Robert Silverberg, um dos mais celebrados autores da Ficção Científica. Publicado em 1996 não é memorável, nem sequer na bibliografia do autor que assinou textos bem mais interessantes trinta anos atrás, quando a cultura hippie e a moda new wave ainda não tinham contaminado o género conduzindo-o a moribunda decadência.
Apesar da constatação da sua menoridade a narrativa lê-se com agrado, conquanto não exijamos dela o que não está em condições de oferecer: uma grande obra literária.
Temos então a nave espacial a avançar a velocidade superior á da luz no Intermúndio, uma espécie de vazio espacial, donde emergirá para a dimensão einsteiniana sempre que se justifique a abordagem a algum planeta prometedor para a colonização pela espécie humana. Daí que a tripulação da Wotan seja constituída por vinte cinco homens e outras tantas mulheres dispostos a cumprir o preceito bíblico de crescerem e multiplicarem-se. Só que as duas primeiras abordagens são dramáticas: no primeiro planeta existe uma estranha força invisível a condicionar a mente dos astronautas, que depressa sentem a urgência de dali escaparem, embora a decisão se revele demasiado tardia para um deles, que sucumbe a uma queda descontrolada, quando corria sabe-se lá para que objetivo. No segundo planeta a atmosfera muito semelhante à da Terra até convidava a uma possível implantação colonizadora, mas o terreno rochoso basáltico estava coberto por uma densa vegetação com uma altura de quilómetros e pela qual cirandavam uns vermes gigantescos e uns parasitas, que nele incubavam os seus ovos.
Faltam-me umas sessenta páginas para o final e não adivinho como Silverberg deu ponto final à sua obra, que parte de um cenário curioso: se os cinquenta tripulantes da Wotan tinham aceite a missão, que os levaria para muitos anos-luz de distância não era para escaparem a uma qualquer distopia terrestre, mas pelo contrário: resolvidas todas as rivalidades nacionalistas, o planeta tornara-se num espaço global de paz e de prosperidade, mas onde os habitantes se entediavam com a falta do que lhes poderia estimular a adrenalina. Daí a insaciável curiosidade com que acompanham a expedição aos confins da galáxia, pelo menos enquanto se mantem ativo o canal de comunicação telepática estabelecido entre Nöelle, que segue na nave, e a irmã gémea, que se quedara na Terra.
3. Noutro livro em fase de descoberta - «Amarelo» de Michel Pastoureau - constato a abordagem inovadora do amarelo no século XII com o aparecimento das armaduras, que impuseram um novo sistema de símbolos capaz de lhe conferirem destaque primordial. Se a liturgia não lhe conferira essa importância os brasões fá-lo-iam aproveitando a passagem de três cores primárias (o branco, o vermelho e o negro) para seis (as anteriores mais o verde, o amarelo e o azul).
O amarelo passava a ser entendido como uma cor bem definida, que não resultava da mistura de diversos pigmentos e corantes. E se começa por ganhar relevância na heráldica, depressa transita da decoração dos escudos utilizados nos campos de batalha e nos torneios para o conjunto da sociedade.
Emancipado, o amarelo parte à conquista da sua determinante utilização nas mais variadas manifestações da vida social.

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