terça-feira, abril 26, 2022

João Tordo, Dulce Maria Cardoso, Murakami e Flaubert

 

1. Avançamos rapidamente no mais recente romance de João Tordo confirmando a sua capacidade para prender-nos com histórias capazes de suscitarem-nos o anseio de lhes sabermos os desenlaces.

Em «O Naufrágio» um escritor quinquagenário, há dez anos sem inspiração para escrever novos romances, e vivendo dos direitos dos muitos anteriormente publicados, enfrenta duas ameaças imediatas à sobrevivência: um cancro para que não parece haver possível remissão e a campanha desencadeada por sete réplicas nacionais do movimento #MeToo, que lhe desfazem a reputação por conta do assédio sexual a que as terá sujeito. Para onde Tordo nos encaminhará a partir deste contexto, depressa iremos descobri-lo.

2. Numa crónica Dulce Maria Cardoso conta-nos uma daquelas novidades que, mesmo ambíguas na veracidade, não deixam de ser bem esgalhadas: os jacarandás de Lisboa seriam os únicos a florescerem duas vezes, uma correspondendo à nossa primavera no hemisfério norte, a outra à do sul, que se terá mantido incrustada na sua memória vegetal.

3. Igualmente de leitura fácil - mas exigente o bastante para não ser confundida com a literatura light! -, está o universo de Haruki Murakami, um daqueles previsíveis Nobéis que, provavelmente, nunca o galardoarão. Revisito «Kafka à Beira-mar» para reencontrar Kafka Tamura, o miúdo de quinze anos saído de Tóquio para uma busca existencial na ilha de Xicoco, que o liberte da maldição edipiana de deitar-se com a mãe e matar o pai. Essa progenitora, que o faz sofrer, por dele ter prescindido, quando era muito jovem, pode ser a menina Saeki, que descobre como bibliotecária e por quem se enamora. A visita a um templo xintoísta e à floresta próxima onde residem os espíritos dos antepassados podem facultar-lhe respostas, que ele também procurara junto de Nakata, um velho capaz de comunicar com os gatos.

4. Um dos conselhos mais interessantes que um pai deu a um filho foi o de Flaubert que, em 1840, lhe pagou um périplo pelo sudoeste francês como prémio pelo seu recém-obtido diploma do liceu. Achille Flaubert, que era cirurgião-chefe do hospital de Rouen, instou o filho a não viajar como um vulgar caixeiro-viajante, observando tudo quanto pudesse.

Aos 18 anos, porém, o jovem Flaubert mostrava-se sarcástico e, ao chegar a Biarritz, desilude-se com a falta de banhistas em trajes mais reveladores das concupiscentes formas só seguindo verdadeiramente o conselho paterno, quando demandou os Pirinéus e se extasiou com a paisagem. Apesar de já alimentar uma perspetiva muito crítica em relação aos costumes burgueses - que doravante cuidaria de ilustrar! - Flaubert vive momentaneamente a contradição entre a tentação realista e o romantismo assente nessa presença insinuante da natureza dentro de si. 

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