Confesso que a diabolização de Pablo Picasso por conta da vitimização das suas mulheres é tema que me repugna, porque tantos outros artistas foram tão misóginos quanto ele, mas por não terem pintado Guernica ou a Pomba da Paz nem um beliscão levaram quanto a essa conduta.
Dora Maar foi tida como uma das mais pungentes vítimas do artista. Ela foi a mulher que chora em múltiplas representações, e noutras variações, que num total ascenderiam a cinco centenas de retratos, tornando-a na musa que mais o inspirou.
Se outra virtude não tivesse, o documentário de Marie-Eve de Grave apresentaria esta: antes de Picasso, Dora Maar teve uma existência multifacetada como um dos principais rostos e criadores da estética surrealista. Quer como modelo de Man Ray, quer como fotógrafa, criou um rico portfolio de obras, que justificaram plenamente a retrospetiva que o Centro Pompidou lhe dedicou há cerca de dois anos.
Podemo-nos interrogar sobre o que se terá passado com ela para, depois de substituída nos favores do mestre, pela mais juvenil Françoise Gilot, que tenha caído num precipício mental, que a levou ao manicómio e, depois, à condição de fervorosa católica?
Mas não se vislumbram razões para que Picasso tenha tido um papel determinante numa deriva, que viria depois a revelar-se trágica na forma como foi encontrado o seu apartamento parisiense quando morreu. Mesmo que logo depois da rutura entre os dois, ela lhe tenha copiado o estilo e dado sequência a algumas das suas obras.
Podemos conjeturar até que ponto a aposta surrealista já não comportava mentalmente algo de instável na jovem desenraizada, que passara a infância entre a França natal e a Argentina, depois voltando definitivamente a casa quando o tão adorado pai a deixara órfã na adolescência. E de quem Picasso mais não constituíra do que uma vaga réplica...
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