1. Bem sei que o Torquemada de Kiev gostaria de proibir-nos a sua audição, mas bem fracote se revela para que nos consiga impedir a fruição da Valsa nº 2 ou da Sinfonia Leninegrado de Dmitri Chostakovitch. Nem tão pouco privar-nos da grande literatura russa, ou do notável cinema dos maiores realizadores do cinema soviético.
Se nem Estaline, que embirrou com Lady Macbeth de Mtsensk, demasiado vanguardista para o seu gosto conservador, conseguiu silenciar o compositor, que continuou a compor belíssimas partituras para os filmes dos amigos, muito menos conseguirá um comediante de meia tijela, por muito que, momentaneamente, tenha feito cingir Valery Gergiev, Anna Netrebko e outros grandes vultos da música russa, a fronteiras demasiado exíguas para a expressão dos seus talentos. E, por muito que haja quem dê grande enfase ao confessado medo de Chostakovitch nos anos 30, quando as purgas ameaçaram levá-lo, ninguém consegue negar que o compositor aderiu ao Partido Comunista em 1960.
A cultura russa é de uma riqueza imensa e querer ostracizá-la equivale a quererem-nos condenar à ignorância de livros, músicas e filmes, que ajudam a melhor entendermos esse lado do mundo euroasiático. Que também explica substancialmente o que está em questão nos campos de batalha na Ucrânia.
2. A notícia do Nobel da Literatura a alguns dos galardoados deu-me grandes alegrias nalguns idos anos. José Saramago a maior, mas também Garcia Marquez, Günter Grass, Le Clézio ou Modiano. Já quando premiou desconhecidos ou quem não cabe nas minhas simpatias - Bob Dylan ou Vargas Llosa - prefiro passar rapidamente adiante. Mas cabe à Academia o mérito de nunca terem dado satisfação a um prosador de Benfica que, por estes dias, perfez os oitenta anos, prova manifesta em como a inveja não afeta a esperança de vida e até é capaz de a prolongar.
Teria, porém, enorme alegria se visse recompensada a obra de Erri di Luca, escritor napolitano com um passado de militância de esquerda, mas também muito adestrado na composição de textos com muito de poético, mesmo quando adota a forma de romance. Como sucede neste Montedidio, que homenageia no título um bairro da cidade do sopé do Vesúvio e onde, logo nas primeiras páginas, ficamos a saber não ser fácil encontrar sítio entre as passadas onde depositar urgente escarro se para o chão o quisermos verter.
O protagonista do romance, um adolescente posto a trabalhar com treze anos depois de fazer cinco anos de escolaridade, irá testemunhar as múltiplas realidades da sua cidade nos anos 50, quando as ruas eram encimadas de tetos de roupas estendidas das janelas e havia dois níveis muito distintos da realidade: a que se passava na rua e a que se vivia nos terraços, sítio privilegiado dos primeiros namoros e de vigia de tudo quanto à volta ocorre.
Não falta San Gennaro, o santo padroeiro da cidade, que tem a população rendida à sua devoção pelo suposto poder de conseguir travar a lava se o vulcão despertar, nem sobretudo esse dialeto, que faz escrever ammor com dois émes e em que se expressam quase todos quantos rodeiam o rapaz, também atento ao velho sapateiro judeu vindo do norte da Europa e capaz de ver realizada uma profecia em forma de um bater de asas.
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