sexta-feira, junho 05, 2020

(NM) De fantasmas em Carachi até aos albatrozes dos mares do sul passando pela festa dos mortos no México ou os refugiados em Lesbos


1. Chamam-lhes os fantasmas de Carachi. São cerca de mil e quinhentas mulheres encerradas num edifício situado na periferia pobre da grande cidade e que é o maior hospital psiquiátrico de toda a Ásia. A povoá-lo estão não só aquelas que nasceram com problemas hereditários, fazendo-as incompatíveis com uma vida convencional, mas sobretudo aquelas a quem as famílias sujeitaram a tais agressões e humilhações, que a pulsão para o suicídio ou, no mínimo, para a depressão profunda as empurrou para ali.
Não é que a instituição, gerida por uma ONG, não procure devolver às respetivas famílias aquelas que, devidamente medicamentadas, são consideradas curadas dentro dos limites impostos por essa consideração. Mas depara-se quase sempre com a oposição daqueles que delas se demarcaram definitivamente e nem querem sequer considerar a possibilidade de as voltarem a receber no seu seio.
Aa reportagem de uma vintena de minutos, emitida pelo canal ARTE, dá rosto a quem se viu empurrado para um patamar ainda mais abaixo do que a generalidade das mulheres ocupa na sociedade paquistanesa.
2. Melhor consideração merecem os mortos mexicanos que, no final de outubro, começam a ser homenageados pelas famílias com rituais em que não faltam as catrinas, representações de esqueletos de damas da alta sociedade tomadas como figuras de um folclore mais próximo dos objetivos comerciais - há toda uma indústria de confeitaria e de decoração a lucrar com essa tradição! - do que com o retomar das tradições dos antigos toltecas.
Nas passagens pelo México nunca tive oportunidade de vivenciar essa festa colorida e ruidosa, que tem o condão de trazer a memória dos mortos ao breve quotidiano das famílias. Mas decerto dela me sentiria muito dissociado ou não encare a morte como aquilo que a razão me dita ser: o encontro definitivo com o Nada!
3. Na ilha de Lesbos milhares de refugiados vindos da Síria e do Afeganistão acumulam-se enquanto esperam pela oportunidade de verem apreciados os dossiers pelos quais possam vir a ser aceites num qualquer país europeu ou, mesmo, chegar a Atenas para, junto da respetiva embaixada, pedir asilo ao Canadá.
Noutra reportagem assaz interessante descobre-se uma rapariga afegã, embora já nascida num campo de refugiados no Irão que, aos dezasseis anos, não se conforma com a situação em que vive e tudo faz para sacudir a rotina dos dias sempre iguais. Daí que, sem qualquer experiência ou formação para tal, tenha iniciado aulas de inglês para outras refugiadas, ansiosas por aprenderem uma língua que sabem determinante para o imprevisível futuro que as espera. Ou pintando t-shirts com motivos coloridos que, comercializadas pelas ONG, permitem financiar um espaço concentracionário onde tudo falta, incluindo a própria comida.
O que se admira na rapariga em causa é o seu entusiasmo: em vez de se deixar vencer pelas dificuldades não hesita em contrariá-las na medida das suas limitadas forças.
4. Uma das respostas nunca encontradas nos documentários sobre a natureza é sobre o facto de, por exemplo, os pais ou as mães das crias dos pinguins reconhecerem-nas de entre as milhares de outras existentes nas suas colónias de procriação, baseando-se apenas nos sons com que as chamam ou por elas são chamados. Se existem prodígios espantosos no mundo natural esse é um deles. No entanto, hoje deparei-me com uma realidade exatamente oposta relativamente a um albatroz numa colónia de nidificação nas ilhas da Geórgia do Sul. Embora a cria estivesse ali ao lado do ninho, donde uma tempestade a empurrara, o progenitor não lhe dava qualquer atenção, porque só o faria se ela se tivesse nele mantido.
Resultado: não sei se com a conveniente ajuda dos operadores de câmara a pobre cria lá subia a custo para o poiso, altura em que, finalmente, o progenitor a reconhecia como sua e começava a alimentá-la com o que resultara da sua surtida ao mar alto.
Sinceramente esperava bem mais da inteligência dos albatrozes...

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