Em 9 de abril de 1948 a capital da Colômbia ficava a ferro e fogo no chamado bogotazo: o atentado contra a vida de um político muito popular, Jorge Gaitan, que prometia virar costas ao statu quo pelo qual as principais famílias do país dividiam entre si as riquezas dele sugadas.
Gabriel Garcia Marquez, então estudante de Direito testemunhou o clima de guerra civil decorrente do acontecimento e zarpou para Cartagena de las Índias, onde os riscos se minguavam, mesmo que, através da imediata entrada num dos principais jornais da cidade, se decidisse a fazer da escrita arma. Primeiro como jornalista, depois através dos sucessivos romances que, além de darem superlativa expressão ao que se convencionou chamar de realismo mágico, também comportavam a descrição lúcida e muito crítica sobre o estado da luta de classes no seu país.
Cinquenta anos depois aportei a essa cidade após volta completa pelos portos da América Latina e deles todos foi Cartagena o que mais me encantou. A fortaleza quinhentista lembrava a dos piratas das Caraíbas na Eurodisney, mas com uma vantagem significativa: era autêntica e não de contrafação. Na altura Medellin andava nas bocas do mundo por conta da equívoca notoriedade de Pablo Escobar, mesmo que já falecido seis anos antes. Por isso não estranhei quando me vi expulso de um bairro por onde passava, apenas porque a polícia ali se aprestava a montar cerco a um prédio próximo onde se escondiam não sei que meliantes.
Na véspera da chegada ao porto lera Relato de um Náufrago, livro fascinante sobre a epopeia de um marinheiro caído acidentalmente nas águas caribenhas e dez dias metido numa rudimentar balsa, sempre com tubarões por perto quando a tarde caía. Cem Anos de Solidão já era um dos três livros escolhidos para me acompanharem na proverbial ilha desértica e não podia imaginar que, naquelas ruas percorridas com jubilação, Garcia Marquez imaginara os amores trágicos, mas quase eternos, entre o telegrafista Florentino e a virginal Fermina. Embora publicado em 1985 só leria Amor em tempos de cólera alguns anos depois, ainda que antes de Javier Bardem reivindicar para si a representação fantasmática do personagem.
É verdade que no livro nunca se aponta Cartagena como a cidade em que Florentino cumpre funções de telegrafista e fica irreversivelmente embeiçado pela bela filha do influente Lorenzo Daza. Mas tentem convencer os habitantes da cidade em como ocorreu noutro lado esse enfeitiçado deslumbramento entre Florentino e Fermina!
Dois anos se passam e muitas cartas de amor trocadas com a ajuda de uma tia dela. Ele pede-lhe a mão, mas ela manda-o esperar mais dois anos pacientemente cumpridos na prossecução da apaixonada correspondência. Até que se mete uma freira pelo meio a alertar Daza da clandestina troca epistolográfica. A intermediária é recambiada para longe e arranja-se forma de apressar casamento de Fermina com um bem apessoado rapaz vindo da Europa, onde estivera a estudar.
O par só se reencontra no velório e enterro de Juvenal, que morrera acidentalmente na captura de um papagaio. Mais de meio século depois pode finalmente cumprir-se a paixão, que os vinculara desde os verdes anos. Nesse sentido Cartagena reivindica esse estatuto de lugar onde os amores tendem a ser ainda mais eternos do que sobre eles poetizava Vinicius de Moraes.
Vale a pena recordar que o palmilhar daquelas ruas tinha como fito principal o encontro com uma estação dos correios de onde pudesse telefonar para casa. Já duas dúzias de anos durava a relação apaixonada com quem pretendia ouvir do outro lado da linha, do outro lado do oceano e outros vinte e dois decorreram desde então.
Numa altura em que não têm faltado amores duradouros no que leio ou naquilo sobre que escrevo - há um par de dias publiquei um texto sobre Robert Mitchum ter encontrado Dorothy, aos 16 anos tendo ela 14, e nunca mais se largando até à morte dele sete décadas depois - é sempre estimulante revisitar exemplos eloquentes dos mais gratificantes happy endings.
No fundo sou um romântico incurável...
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