terça-feira, junho 16, 2020

(DL) A Fábrica do Consumidor


No ensaio «La Fabrique du Consommateur», Anthony Galluzzo usa a bicicleta como caso de estudo: surgida em 1890 o novo objeto dividiu a sociedade de então, com os conservadores a depreciá-lo porque, usada pelas mulheres, «incitá-las-ia à masturbação e comprometeria o equilíbrio familiar». Razão para os defensores da nova ferramenta de modernização multiplicarem histórias sobre as potencialidades de encontros entre jovens de boas famílias, doravante facilitados na capacidade de fundarem lares eternamente felizes.
Nessa época iniciou-se a fulgurante conversão das populações, depressa constituídas por indivíduos consumidores. E essa transformação iniciara-se a meio do século XIX na região do Vaucluse: de acordo com o antropólogo Laurence Wylie os camponeses abandonaram a forma de exploração das pequenas propriedades, até então garantia do seu autossustento, para reciclarem-se na criação de bichos-da-seda cujo valor de mercado se inflacionava. Desenvolveu-se doravante um acelerado fetichismo da mercadoria. Se até então os campos produziam o bastante para o sustento das famílias, tenderiam depois a uma produção intensiva de mercadorias comercializáveis com a migração para as cidades de muitos dos que deles tinham vivido. Em pouco tempo passou a consumir-se o que se desconhecia, como plantava, semeava e colhia ou, em alternativa fabricava, porque sobreveio a sofisticação das indústrias transformadoras na área agroalimentar.
Galluzzo define a sociedade de consumo como aquela em que se quebrou o vínculo direto entre quem produziu o bem e quem o adquire. E que, embora nos pareça natural, consolidou-se em tempos mais recentes do que poderíamos crer. Só com o sucesso das tecnologias é que as mercadorias começaram a fluir, os mercados a desenvolverem-se, a divisão do trabalho a impor-se até à globalização.
Essa evolução trouxe outra mutação: se os produtos consumidos nos campos prescindiam de qualquer tipo de promoção por serem bem conhecidos de quem os tinham produzido, outra estratégia exigiria quantos eram alheios a esse vínculo. Daí a afirmação das técnicas publicitárias, que vão desde a forma de expor os produtos nas montras, até à de os embalar e lhes dar a identidade de uma marca. As mercadorias obrigavam-se a ser promovidas se pretendia garantir-se a compra pelos consumidores.
Ganham então particular importância as revistas femininas destinadas a divulgar novos objetos, gestos, hábitos e éticas de consumo. Alimentavam nas leitoras o desejo de percecionarem e aderirem às novas modas e criar-lhes a ilusão de se mostrarem sedutoras no competitivo cenário social.
Fútil terá sido o anticonformismo dos anos 60, que fez da sociedade de consumo um efémero inimigo. Sem disso se darem conta os seus entusiastas estavam, eles próprios, a exprimirem mais uma breve moda. Daí que Galluzzo só veja exequível um novo modelo social e económico para virar de pantanas o consumismo alimentado pelo sistema capitalista: retomarmos a produção do que consumimos reduzindo ao mínimo os desperdícios, ,a pegada ecológica e os modelos de divisão do trabalho.

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