sábado, setembro 23, 2023

A lenda de um deus mortal e assexuado

 

Em A Escola de Atenas Rafael terá explicitado o que o diferenciava do contemporâneo Miguel Ângelo: enquanto se representava integrado num grupo como ser social que era, o esquivo e melancólico criador do teto da Capela Sistina aparecia à parte de todos os demais, como se abandonado às profundas reflexões.

O feitio dos dois pintores seiscentistas não podia ser mais antagónico e por isso foram rivais até por ser esse o interesse do papa, que lhes encomendava parte significativa das obras. E se ninguém de bom senso discute qual deles seria o mais talentoso, Rafael consegue que haja quem, em Dresden, olhe para a Madona Sistina e tenha dificuldade em reter as lágrimas. Porque a criança ao colo da mãe tem um olhar aterrorizado, como se soubesse qual seria o seu destino, e a própria Virgem está triste, igualmente ciente desse incontornável futuro.

Para se distraírem das emoções esses corações piegas podem fixar-se no rebordo inferior do quadro onde surgem pela primeira vez os dois anjos, que seriam replicados vezes sem conta nos séculos futuros.

Morto inesperadamente aos 37 anos, diz-se que durante árduo esforço sexual, Rafael seria endeusado daí por diante, muito contribuindo Vasari com a biografia repleta de episódios lendários como o de, nesse 6 de abril de 1520, uma sexta-feira santa que o conotaria com a morte de Cristo, terem-se multiplicado fenómenos sobrenaturais, mormente um terramoto que danificou significativamente os apartamentos do papa. Terá sido esse biógrafo a querê-lo conotar com a condição de deus mortal e assexuado, que se divulgou maioritariamente desde então. 

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