sábado, julho 01, 2023

Um dos romances a levar para a ilha deserta

 

A lenta, mas prazerosa leitura do Gente Feliz com Lágrimas devolve-me ao encontro a sua intensa descoberta, quando andava nos meus trintas. Foi nodistante ano de 1988 que, num verão passado na Grécia, passei horas a deleitar-me nessa leitura, seja nas longas horas de fim-de-semana, quando o ar condicionado era a salvação perante as agruras do insuportável calor lá fora, seja à noite, quando ia para uma esplanada e continuava-lhe a leitura diante de um frappé.

Trechos, como o agora deparado a meio do romance, faziam-me ler e voltar atrás para melhor apreender a forma como João de Melo tão bem descrevia as características enevoadas dos céus açorianos tais quais recordadas por quem deles se apartara em (des)proveito da terrível snow de Vancouver: “Dos Outeiros para cima, lá bem na alma da serra, o mundo mergulhava de repente numa bruma de chuva, com um azul fumo erguendo-se nos rolos formado pelo vento. O sol desaparecia durante o resto do dia. Mal podíamos despedir-nos dele com o olhar, vendo-o pela última vez ao longe, no sítio onde acabava o mar e o céu se erguia naqueles discos de nuvens paradas como a eternidade. Havia, há sempre no céu dos Açores, nuvens castanhas e nuvens cor de pedra, e entre umas e outras enrolam-se argolas de fumo e grandes massas de ar carregado de chuva. Foi assim aliás que aprendi tudo a respeito do nevoeiro, do granizo e da sombras que há no tempo. Sofri os ventos frios, brutais, e a sua humidade corrosiva como o ácido da ferrugem. Ainda hoje não saberei dizê-lo de outra maneira, porque ninguém me explicou a máquina do mundo. Mas a mim sempre me pareceu que a ventania atravessava a Ilha de norte para sul, levando as nuvens e o próprio mar dum lado para o outro da costa. O vento tinha um gosto a sal, feria-nos as asas do nariz e rasgava-nos os beiços, e o frio era tão cortante que nos enchia os ossos de humidade.”

Perante estas linhas, que mais lhes acrescentar senão a rendição a um dos romances mais impressionantes, que têm passado, e repassado, pelas minhas mãos?

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