Dias atrás, ao falar com a minha irmã, que foi quem me deu a vontade de ir à descoberta do universo literário de Romeu Correia, ouvi-lhe a dúvida quanto a ser legítima ou não a integração do escritor almadense no lote dos neorrealistas. Porque, na verdade, e ao contrário do então verificado nos livros de Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol ou Ferreira de Castro, não se sai dos seus livros com uma centelha de esperança quanto ao futuro dos seus personagens. Tudo ali é miséria, exploração, fome e desespero ... apesar da resiliência, que leva a maioria a ir superando o dia-a-dia.
Ao acabar a leitura do primeiro romance do autor - Trapo Azul (1948) - impressiona-me, sobretudo como a realidade era tão difícil para a maioria das pessoas do meu concelho natal apenas uns anos antes do meu nascimento. E, como trinta anos depois da publicação, o próprio Romeu Correia explicava aquele terrível estado de coisas à conta da falta de consciência de classe, que norteava a maioria das pessoas: parecia vingar o salve-se quem puder e, como Hobbes já constatara três séculos antes, o homem era mesmo o lobo do homem: «Na pacata vila de Almada, que por esses tempos não ia além de trinta mil almas, passei ao papel uma longa história das pobres costureiras dos fatos de ganga para os operários, profissão-último recurso, sujeita à mais desenfreada exploração das mestras, que nalguns casos (por paradoxo que pareça!) eram mulheres ou filhas de… operários.
A falta de consciência de classe tem sido uma constante anti-revolucionária do povo português; a mentalidade pequeno-burguesa uma alienação, uma nódoa impercetível, que alastra, traiçoeira, por todos os lados. A fome e o frio sofridos na carne não são vistos como uma flagrante e intolerável injustiça social a que devemos pôr fim.»
Infelizmente, e numa altura em que as televisões e outros meios de estupidificação coletiva empurraram uma percentagem significativa da população mais empobrecida da sociedade portuguesa para as ilusões da extrema-direita, só posso constatar que a perspetiva de Romeu Correia continua lamentavelmente atual...
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