terça-feira, outubro 25, 2022

A Sede do Mal, Orson Welles, 1958

 

Pode-se voltar a ser feliz no sítio onde antes se o foi? Posso afiança-lo a propósito de Robles, cidadezinha na fronteira americano-mexicano, onde dois polícias rivalizavam para explicar quem fora o culpado pela morte do seu mais influente milionário num atentado à bomba perpetrado quando percorria as ruas movimentadas da urbe ao volante do descapotável e tendo ao lado uma  stripteaser.

Não sei quantas vezes vi A Sede do Mal, que Orson Welles rodou para a Universal em 1958, por pressão de Charlton Heston, um dos protagonistas, que tinha uma profunda admiração pelo realizador de O Mundo a seus Pés. Mas todas elas deram-me um enorme prazer por constituírem uma renovada lição de cinema, sempre capaz de me porem a descobrir pormenores anteriormente indiscerníveis. Porque não são só os enquadramentos, com recurso a abundantes grandes angulares e a sombras expressionistas, que contribuem para todo o filme em nada se assemelhar ao que era comum em Hollywood. Os planos-sequência são de uma eficiência a toda a prova tanto mais que se fazem acompanhar de uma banda sonora capaz de aprofundar a dimensão da obra.

E há, sobretudo, a dimensão ideológica subjacente à história. Não podemos esquecer que o exílio de Orson Welles na Europa não se explicava apenas pelo rotundo fracasso de A Dama de Xangai em 1948: nos tempos mais sinistros do macartismo, o realizador merecera particular atenção dos apaniguados de Edgar Hoover, que o consideravam perigoso comunista. Ora Quinlan e Vargas representam duas visões opostas da América à luz do que então nela se vivia: enquanto o norte-americano não olhava a meios para prosseguir os seus objetivos e, por isso, forjava provas para inculpar quem considerava criminosos, o mexicano Vargas cingia-se aos princípios da legalidade e arriscava a vida (e sobretudo a da mulher com quem acabara de casar, aqui personificada em Janet Leigh, autêntica mártir de uma história para que se deixava arrastar imprudentemente) no intuito de os ver respeitados. Que Welles tenha transformado todo o argumento de forma a pôr-lhe em causa o maniqueísmo em que assentava e, sobretudo, tenha transportado a história para a zona de fronteira sul dos EUA de forma a dar ao personagem, interpretado por Charlton Heston, a oportunidade de se converter no alvo da sanha racista do colega americano, muito revela sobre o seu génio.

É claro que tudo isto bastou para pôr os cabelos em pé aos executivos do estúdio, que cuidaram de despedir o realizador tão-só assistiram ao filme, que estava prestes a entregar-lhes como produto finalizado. Para Welles esboroava-se a esperança de convencer Hollywood a financiar-lhe as milhentas ideias, que imaginava para espelhar este mundo de contradições e onde os seus tão glosados tiranos viam as circunstâncias adversas precipita-los na queda.

A Sede do Mal fica como um daqueles filmes, que nunca dou como definitivamente vistos. Porque lá virá o momento em que apetecerá revê-lo com o mesmo deslumbramento!

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