domingo, outubro 27, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XXII): A importância da Amizade

 

Que difícil seria vivermos sem amigos: que o digamos nós, eu e a Elza, que de tantos temos colhido as melhores provas de generosidade neste período difícil, que a doença veio a impor-nos neste crepúsculo da vida.

Alain Cavalier também tem esse privilégio e, como vai filmando quotidianamente tudo quanto vive, detém milhares de horas por montar que chegariam para tornar este L’Amitié apenas um dos muitos filmes de que rechearia a já vasta obra.

Neste título de 2022 ele revela-nos  três desses amigos, de diferentes condições sociais e que parecem nem sequer se conhecer entre si.

Boris Bergman foi o autor das letras cantadas por Alain Bashung e foi sempre um boémio hedonista com muitas histórias por contar.

Maurice Bernart produziu Thérése, o filme de Cavalier com melhor desempenho comercial, e tem um estatuto de grande senhor a viver modestamente uma razoável reforma.

Thierry Labelle já era estafeta, quando entrou num filme de Cavalier há duas décadas e mantém essa profissão, que lhe garante uma qualidade de vida modesta, mas de que sente orgulho.

São três estilos de vida, que Cavalier reporta como se o filme fosse uma espécie de making of por conter cenas em que vai sugerindo aos entrevistados para se posicionarem de acordo com as suas instruções. Mas, com todos eles, há a empatia de terem experiências partilhadas e conceitos de vida semelhantes. O que fundamenta a cumplicidade de que, com todos eles e respetivas esposas, dá mostras! 

sexta-feira, outubro 18, 2024

Histórias Exemplares (XILIII): Vontades “divinas”

Poeta menor e politicamente enfeudado às correntes mais reacionárias do seu tempo, Augusto Gil conheceu algum sucesso com a Balada da Neve, que o Herman José tão gratamente satirizou na referência a um tal Octávio. Mas, independentemente, dessa pilhéria antológica, ficam dois versos, que continuam a fazer pleno sentido e dão incontestável argumentação a quem defende a inexistência de qualquer deus justiceiro. Porque acaso ele existisse, diria Saramago, ser entidade desmerecedora de qualquer confiança, porque  eivada dos piores instintos.

Lembremos esses versos: Mas as crianças, senhor, / Porque lhes dais tanta dor?!...

Recordei-os ao ver uma reportagem sobre crianças que, na Síria, enterram outras da sua idade por terem essa atividade como emprego para ajudarem financeiramente as desvalidas famílias. Ou as que, ali muito perto, no Iraque, sofrem anomalias genéticas causadas pela poluição da indústria petrolífera explorada pela BP e pela Shell, que não cuidam de evitar os piores danos da sua atividade junto das populações limítrofes das suas instalações.

Mas também em Gaza, na Cisjordânia, ou no Líbano, são crianças muitas das vítimas do genocídio perpetrado pelo governo fascista instalado em Telavive.

Nessa reportagem da Arte um empregado da morgue de Bassorá interroga-se quanto ao sentido de ver-se obrigado a cuidar de tantos corpos infantis. E a resposta é a mais absurda, que pode ser dada: é a vontade de deus!

Vontade de deus? Até quando irão as vítimas desse logro confiar em tal explicação? 

Notas de Rodapé (XV) - Quando a realidade demonstra o acerto das teorias emancipadoras

 

Datado de 1954 o quadro de Carlo Levi exposto numa galeria de Turim, demonstra bem quanto o autor de Cristo parou em Eboli foi um intelectual versátil, que aliou o talento par a escrita e a pintura com uma ativíssima militância antifascista.

Exilado no sul de Itália em 1935 ele foi o exemplo lapidar de quem conhecia as teorias socialistas, mas desconhecia quanto sentido faziam quando ajustadas à realidade concreta da vida dos mais desfavorecidos.

Na Basilicata, particularmente em Matera, descobriu quanto era difícil a vida de gente inculta e sem capacidade para assegurar a mais básica sobrevivência. Daí a constatação de Cristo ter parado em Eboli por aquela gente, com que tanto simpatizou, ser ignorada pelos governos, que lhes deveriam propiciar o pão, a saúde, a educação e a habitação, mas até pelos deuses perante cujo culto era instada a submeter-se.

Carlo Levi deve ser recordado como notável exemplo de uma geração, que soube utilizar as artes como ferramenta para transformarem a relação de e exploração dos humilhados e ofendidos por quantos, com mais ou menos fascismo à mistura (meloniano na versão atual), continuam a alimentar a sua inesgotável ganância.

De alguma forma Nanni Moretti, com incansável labor de cineasta, faz figura de Dom Quixote capaz de lhe pegar no testemunho e investir contra o que são inimigos mais corpóreos do que os anódinos moinhos de vento.

quinta-feira, outubro 17, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XXI): uma Pátria distópica

 

Não dei conta de ter havido um grande afluxo de espectadores para ver o Grand Tour de Miguel Gomes apesar de premiado em Cannes e vendido para mais de sessenta países. Pelo vistos têm melhor sucesso local os filmes que falam da tal portugalidade  a que o filme é tão manifestamente avesso. Ademais, sendo a preto e branco, não tem a mínima oportunidade para satisfazer os delicados estômagos do público-pipoca que prefere as coloridas alarvidades, ou tão só as parvoíces de alguns conteúdos, que lhes são propostos como sinónimo de “cinema” comercial. Que, no entanto, nunca consegue ser rentável, porque cingido ao pequeno mercado português, ao contrário das tais propostas “intelectuais” que, duradouramente, vão sobrevivendo na abrangência planetária.

Não se pode dizer que Pátria seja parvo ou sequer alarve - embora o sejam as milícias da ditadura nela representada como réplica de um Portugal, que existiu durante quase meio século, ou hipótese para tantos países onde as extremas-direitas vão recolhendo maiores apoios eleitorais. Há nele a tentativa de conciliar o inconciliável: a portugalidade (mesmo que configurada numa distopia geograficamente não localizada) com o acesso a um público dela alheado. Enquanto proposta cinematográfica fica longe de ser obra-prima, mas é coisa asseada, que não desprimora a sinceridade do propósito de Bruno Gascon, quando quer lembrar quanto a liberdade não é, de modo algum, algo que possa ser dado como garantido.

Pode-se considerar que falta espessura a alguns personagens, mas o filme rodado durante a pandemia demonstra a tentativa de sobrevivência daqueles que ficam no limbo entre os garantidamente talentosos e os meros oportunistas. Vale a pena continuar atento à futura filmografia do realizador.

terça-feira, outubro 15, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XX): As saudades que As Armas e o Povo suscitam

 

De vez em quando gosto de rever este documentário, que alguns sindicalistas das atividades cinematográficas rodaram no Primeiro de maio de 1974, intermediando as cenas da gigantesca manifestação com algumas outras colhidas no dia em que os cravos saíram dos canos das espingardas.

Sinto saudades desse tempo em que tudo pareceu possível. E era-o numa tal dimensão que não tardei a ter na Elza a perene cúmplice para a invenção do Amor com carácter de urgência, aliando o desejo de utopia no foro pessoal com as desejadas para o mundo em que vivíamos.

De pouco importam as questões de saber se Seixas Santos ou António Pedro Vasconcelos participaram, ou não, na feitura deste documento. Do Glauber Rocha, notável realizador brasileiro, é que não temos dúvidas: foi ele quem recolheu testemunhos de tanta gente cheia de esperança em como a sua torta vida iria encontrar novos e mais prenhes sentidos. E sobre a mensagem de propaganda como não entendê-la com a urgência de quem se vira abrir todo um horizonte diante de si e pretenderia impedir que se voltasse a estreitar.

De responsabilidade coletiva, e imperfeito na urgência com que foi produzido, rodado e montado, As Armas e o Povo é um dos filmes mais genuínos sobre um tempo inolvidável nas nossas vidas.

sexta-feira, outubro 11, 2024

Histórias Exemplares (XILII): porque riem os personagens dos quadros de Frans Hals

 

É um mistério insolúvel na História da Arte: o que levou Frans Hals a conferir tão contagiantes sorrisos aos personagens, que representou nos seus quadros? É que, olhando para a sua biografia, não lhe faltaram motivos para ultrapassar o contemporâneo Rubens na seriedade dessas expressões fisionómicas.

Enviuvado cedo da primeira mulher, Frans Hals sempre viveu com grandes dificuldades económicas  por ter imensa prole - catorze filhos - para sustentar. E não lhe faltaram por isso problemas com a justiça com padeiros e merceeiros a imporem-lhe processos para recuperarem as pesadas dívidas acumuladas nos respetivos roles.

Benjamin Moser é um dos que apreciam os quadros do pintor flamengo e os dizem capazes de o predisporem bem. Porque as pessoas fixadas nas telas parecem deles sair para nos comunicarem a sua alegria. E um curador de exposições aventa a forte probabilidade de Rembrandt ter-se nele influenciado para criar a sua Ronda Noturna. É que o artista de Haarlem acabara então - em 1639—de criar a sua obra final, representando-se no meio dos membros da milícia de São Jorge assim dando o único autorretrato, que permite-nos conhecer o seu aspeto. 

terça-feira, outubro 08, 2024

Notas de Rodapé (XIV) - Um improvável Nobel

 

Sei que é próprio da sua escrita, mas A Morte do Comendador de Haruki Murakami exagera na lentidão, nas informações repetitivas, nos detalhes insignificantes e irrelevantes. Por isso mesmo as quase 900 páginas bem poderiam ficar reduzidas a metade se depuradas do que nelas pouco interessam.

Vem isto a propósito de estarmos à beira da designação do Nobel da Literatura e o japonês ter lugar cativo no lote dos  candidatos. Mas surpreender-me-ia bastante se fosse ele o escolhido embora, depois do prémio atribuído ao baladeiro americano, conhecido investidor nas empresas de armamento, já não se justificaria o assombro.

Assombro é precisamente o que se passa com o pintor, que protagoniza este romance grande (e não o seu contrário) de Murakami: perante o divórcio pedido pela conjugue ele instala-se em casa emprestada nas montanhas de Odawara e descobre um quadro do anterior residente escondido no sótão. Tanto basta para um percurso iniciático em que cabem o mito do Don Giovanni, o fascínio por uma versão local do fitzgeraldiano Gatsby, a queda por um túnel mais lúgubre do que o de Alice por incorporar a versão do barqueiro no Hades e um indefinido episódio no Anchsluss de 1938.

Murakami executa uma receita tendo por condimento o imaginário de uns quantos autores e, no final, até devolve o seu personagem ao ponto de partida: à esposa, que o traíra e lhe dá uma filha, que assume como sua como se lha tivesse gerado num sonho.

sábado, outubro 05, 2024

Histórias Exemplares (XILI): quando é já tanta a chapa gasta!

 

De vez em quando - e porque ainda existem sobreviventes do sucedido! - lá nos surge mais um documentário sobre os jovens uruguaios que iam no avião tombado  nos Andes, quando iam para um jogo de rugby e um fim-de-semana no Chile, forçados ao canibalismo para sobreviverem.

O Vale das Lágrimas, emitido há uns meses atrás na RTP, nada nos traz de novo para além da banda sonora xaroposa e umas quantas invocações divinas. Como se o deus, que poupou os vivos, tivesse esquecido os mortos.

Sobre o assunto antes teria preferido assistir a outra abordagem: que levou as autoridades a decidirem o fim das buscas dando como perdidos os sobreviventes dos que afinal esperavam pela sua ajuda? E o que terão sentido quando essa notícia lhes chegou? Não terão sentido o sobressalto de terem decidido da morte de quem se mostraria tão determinado a continuar vivo?