sábado, agosto 17, 2024

Notas de rodapé (IX) - gelo e cerejeiras

 

1. Sempre me fascinaram os incipits literários ou musicais, que identificam uma obra. O Era uma vez, que a ela dá início como sucede num dos romances da minha vida, o Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez em que muito se adivinha em palavras inesquecivelmente ligadas: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.”

Na crónica de Dulce Maria Cardoso na Visão desta semana a escritora consegue algo de aproximado a essa ideia de síntese de um texto subsequente, quando propõe: “Em Luanda era habitual céu e terra zangarem-se para logo de seguida fazerem as pazes. A chuva despejava-se torrencial, mas não tardava que o sol aparecesse— um sorriso funguento, limpa lágrimas - até se tornar abrasador.”

2. Fascina-me, igualmente, a ligação dos japoneses ao efémero, embora nunca tenha coincidido as minhas estadias no Japão com esse final de março, início de abril, em que as cerejeiras selvagens ficam em flor.

Hélas, porque assim perdi, o testemunho da obsessão nipónica por esse conceito de recomeço, que leva os noivos a marcarem o casamento para essa altura a fim de se fazerem fotografar sob o fundo branco das flores nas árvores. Esperando que saiam certas as previsões dos biólogos pagos para estudarem criteriosamente as árvores e acertarem na data precisa em que, por breves duas semanas, proporcionam um cenário de impactante beleza. Lembrando quão breves são os momentos de magia na vida... 

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