quinta-feira, maio 30, 2024

Notas de Rodapé (II) - Os edifícios e o seu contexto

 

Nunca gostei de Nápoles, que me pareceu feia, suja, desorganizada. E, porém, em outubro de 1911, quando Le Corbusier a descobriu, regressado de uma viagem ao oriente, encontrou nela os estímulos para definir a vocação de arquiteto.

Nos cadernos onde anotava apontamentos e fazia alguns esboços do que ia vendo, começou por confessar o fascínio pelas linhas verticais e horizontais identificadas na sua arquitetura caótica.

Houve depois o fascínio pela fachada da Igreja de Jesus Novo e as emoções suscitadas pelas cores dos frescos de Pompeia, que fundamentariam as ulteriores propostas de policromia nos edifícios, cada um deles significando algo de essencial .

A cereja em cima do bolo seria a visita às ruínas da cidade destruída pelo Vesúvio: o que sentiu no Forum foi um choque ao ver o vulcão e a nele ter um impressionante enquadramento. Foi o momento fundador para adaptar ao contexto envolvente tudo quanto depois iria projetar para construir... 

Histórias Exemplares (XXXI) - O fracasso de uns candidatos a demiurgos

 

Se é absurda a ideia de um deus capaz de criar a nossa realidade em sete dias, maior o é a tentativa de quem se julga capaz de replicar essa capacidade demiúrgica.

Confesso que, pelos idos dos anos 80, li com interesse a entusiasmada campanha mediática sobre o projeto de criação da Biosfera 2 no deserto do Arizona, que tinha a intenção de criar um espaço completamente autónomo do exterior  e possivelmente utilizável na Lua, ou em Marte, no âmbito da exploração espacial. Quem ali iria viver nos anos seguintes alimentar-se-ia e respiraria o ar, que produzisse!

Quatro anos depois - em 1991 - a missão lançada por John Allen com a ajuda do milionário Ed Bass foi dada por finda depois de reconhecida a fome e a falta de oxigénio por que passaram os oito participantes. Mesmo que os promotores tudo fizessem para ludibriar a evidência e sonegar as más notícias de quem não tardaria a divulga-las mesmo dando menor relevância da atribuída anteriormente, quando se acreditava piamente no seu sucesso.

Se a consequência mais paradoxal desta experiência científica foi a criação do Big Brother enquanto espetáculo televisivo, resta a pouco divulgada herança atual, sinónimo do desinteresse jornalístico pelos fracassos do que propagandeara: compradas pela Universidade do Arizona, as instalações da Biosfera 2 transformaram-se num laboratório científico donde os investigadores entram e saem quando querem...

domingo, maio 26, 2024

Histórias Exemplares (XXX) - A Nápoles de Malaparte

 

Olho para uma reportagem sobre Curzio Malaparte e constato ter o seu título mais famoso - A Pele -, arrumado numa das prateleiras recuadas das estantes para a possibilidade de o reler e confirmar a impressão colhida ao fim da adolescência: apesar de causar tanto impacto na geração universitária em vésperas do 25 de abril, não me causou assim tanto efeito. Parafraseando Shakespeare: pareceu-me exemplar no ser much ado for nothing, embora a comédia em causa acontecesse em terra de outro grande vulcão.

É certo que, quando a conheci, Nápoles pareceu-me tão suja e desagradável quanto ele a descrevera, mas sem a mística antiga capaz de perigar a segurança dos ocupantes norte-americanos por ele evocados como complacentes com o mercado negro e outras formas de corrupção capazes de dar ao período da Libertação uma sensação de decadência humana. Mas vendo algumas vezes o Etna em erupção - recortando-se alaranjado no negrume da noite vista ao largo da Sicília - nunca tive do Vesúvio mais do que umas inocentes fumarolas.

Acontece que, mal informado, desconhecia que Curzio Malaparte fora prosélito de Mussolini antes de virar a casaca e ganhar estatuto de opositor, que lhe garantiu emprego como elo de ligação entre as novas autoridades e os patrões dos G.I.’s. Porque não acredito na redenção de quem foi fascista - basta ver na rápida conversão de uns quantos salazaristas-marcelistas depressa regressados à anterior pocilga, quando viram esfumado o papão comunista! - uma eventual releitura (tão improvável quanto pegar na Viagem ao fim da noite do Céline, que lhe faz companhia) seria naturalmente condicionada por esse filtro.

terça-feira, maio 21, 2024

Notas de Rodapé (I) - Ar condicionado e orientalismo

 

1. A leitura dos livros de Woody Allen rivaliza em prazer com a fruição dos filmes, mesmo os menos conseguidos na sua filmografia. Porque as pérolas, aqui e além, são muitas e dão que pensar. Nele encontro, nomeadamente, um dos argumentos para o arreigado ateísmo: “Prefiro a ciência à religião. Se tiver de escolher entre Deus e um ar-condicionado, fico com o ar”.

Decididamente, e apesar da pegada ecológica não ser a recomendada, prefiro o ar condicionado, sobretudo nos dias de calor que se avizinharão.

2. Uma das mistificações maiores sobre a China é a pretensão em como um punhado de brancos, mormente comerciantes e jesuítas, chegaram à China e causaram uma profunda revolução cultural.

Um país, que possuía uma cultura milenar e era regida por valores solidamente imbuídos em quem a vivia, poderia olhar com interesse para os estrangeiros para deles colher o que pudessem trazer de maior interesse, mas daí a “ocidentalizarem-se” vai distância de tomo.

3. Mao Zedong foi celebrado pelo regime fundado em 1949 como poeta de mérito: os seus textos literários eram decorados e lidos como sábios no conteúdo, ricos no sentido das metáforas para as quais os admiradores eram desafiados a encontrar as pretendidas chaves. Muitas vezes com consequências trágicas para quem por eles seria visado!

Ele mais não fez do que seguir a tradição dos mandarins, que ascendiam aos cargos governativos em representação dos imperadores depois de longos estudos, que os versavam na poesia dos intelectuais do passado.

Invejável civilização a que obrigava os que detinham o poder de decisão sobre os semelhantes a serem também poetas!

4. Nas mistificações sobre a região importa lembrar que nunca Macau foi “dada” aos portugueses pelo imperador da altura, que apenas lhes dava a permissão de ali comerciarem.

Os supostos direitos históricos do “império” português sobre a mais distante das suas “possessões” contiveram muitas dessas falácias para justificarem uma dimensão épica e moral que nunca foi a dos ditos Descobrimentos.

Por muito que possamos enfatizar os avanços tecnológicos ligados a essa estratégia identitária dos nossos antepassados, eles não deixaram de ter com os atuais descendentes a lógica de buscarem riqueza noutras geografias já que a própria lhes prometia tão pouco.  E não enjeitando formas menos escrupulosas de a conseguirem, porque ninguém lhes tira o demérito de terem explorado sem pudor o tráfico negreiro. 

segunda-feira, maio 20, 2024

Histórias Exemplares (XXIX) - Rebeldes magníficos

 

É uma das questões pertinentes, que o volumoso ensaio de Andrea Wulf suscita: como foi possível encontrar numa pequena cidade leste-alemã, que então se percorria num mero quarto de hora, uma tão profusa quantidade e qualidade de intelectuais, capazes de lançarem uma revolução no pensamento dominante,  que daria primazia ao Eu e crismada sob a etiqueta de idealismo alemão?

Iena foi essa cidade que, sobretudo entre 1794 e 1801, fervilhou com as discussões entre Goethe e Schiller e a quem se associaram, entre outros, Fichte, Novalis, Hegel e os irmãos Humboldt e Schlegel.

Vivia-se o rescaldo da Revolução Francesa e Napoleão Bonaparte ainda não se desmascarara totalmente enquanto títere de uma classe dominante europeia pronta para descartar o que a monarquia possuía de incongruente com a crescente industrialização das economias, e substituí-la por outras vertentes musculadas de chefes fortes, mais ou menos imperiais, mais ou menos fascistas e neofascistas.

O que os intelectuais românticos de Iena valorizaram era a ciência e a experimentação contra as falácias dos preconceitos e mistificações religiosas. E nessa personalidade admirável, que foi Carolina Böhmer já se levava à prática a liberdade sexual capaz de escandalizar os conservadores, que a marginalizavam como libertina.

Quando Iena foi saqueada pelas hostes napoleónicas, Hegel conseguiu evitar que a Fenomenologia do Espírito acabasse em cinzas e fosse uma das obras fundamentais para que Marx viesse a teorizar o seu materialismo dialético. Mas essa é história ulterior à que Andrea Wulff aborda num ensaio tão entusiasmante.

sábado, maio 18, 2024

Histórias Exemplares (XXVIII) - O Mikado enquanto programa de vida

 

Dos atuais escritores italianos Erri de Luca é quem sigo com maior interesse embora muito o distam dos tempos do militantismo mais ativo numa esquerda apostada em mudar a vida dos que  vendem a força do trabalho aos do costume

No romance mais recente estamos na fronteira entre a Itália e a Eslovénia, numa zona montanhosa procurada por um relojoeiro para, qual misantropo, devolver ordem ao caos da vida passada, seguindo as regras de um jogo adequado para avivar a destreza, a memória, a precisão.

Numa noite de invernia vê a tenda invadida por uma adolescente cigana, escapada da família, que a pretendia forçar ao casamento com um homem bem mais velho.

Dos diálogos entre ambos nasce uma cumplicidade que se prolonga para além dos tempos subsequentes, quando as cartas servem de veículo para prosseguir a função de mentor. Embora o caderno que dele chega à jovem, quando as missivas se interrompem, contenham uma confissão, que lhe causam - e a nós leitores que com ela nos identificamos! - uma perceção distinta da que tivéramos até então.

Evidente a coincidência entre o personagem do relojoeiro e o autor, que ajuda a explicar as mudanças, com que os anos foram moldando um autor quase ignorado entre nós.

terça-feira, maio 14, 2024

Histórias Exemplares (XXVII) - O centenário de nascimento de uma obra maior da literatura italiana

 

Esta foi a semana de comemoração do centenário de nascimento da escritora e atriz italiana Goliarda Sapienza que, em A Arte da Alegria criou o retrato de uma mulher livre e inconformista ao longo do século XX. Embora diferente de Elena Ferrante, a sua obra também contribui para caracterizar a condição feminina na bota transalpina.

Romance volumoso de quinhentas e tal páginas, mais do que esgotado entre nós, levou mais de dez anos a ser escrito e só foi publicado postumamente graças à persistência do último dos seus companheiros, o também escritor Angelo Pellegrino, que acaba de publicar uma versão pessoal sobre o seu crepúsculo.

Só assim acedemos às vicissitudes libertinas da protagonista, Modesta, mediante uma descomprometida opção estilística, que nada deve a um cânone preciso.

A iniciar a história (semiautobiográfica) há a violação de Modesta pelo pai, aproveitando Goliarda para recorrer à sua própria experiência (não se sabe se real se fantasmática), que procurara resolver pela psicanálise. A bissexualidade da personagem também muito deve ao fascínio sempre assumido pela autora em relação às mulheres.

Sobram bons motivos para voltarmos a uma obra mal conhecida, que merece encómios exaltados nalguns dos seus admiradores. 

domingo, maio 12, 2024

Apontamentos Cinéfilos (IX): Um ateu a fazer figas pelo sucesso de um cruzado

 

Numa entrevista Ingmar Bergman confessava a importância de se pôr em causa passada a fronteira dos 40 anos de idade, questionando-se sobre quanto fizera de perdurável até então.

O Sétimo Selo é um dos filmes, que resultou dessa reflexão e focalizado em temas para ele tão fundamentais quanto o eram o significado de Deus ou a inevitabilidade da morte.

Curiosamente, eu que andava de fraldas, quando o filme se estreou em 1957, sempre o tomei como um dos mais entusiasmantes de quantos vi apesar de saber-me empedernido ateu e, por isso mesmo, ciente da inexistência de um qualquer deus, só estranhando ver tanta gente inteligente rendida a tão absurda hipótese. Como compreendê-lo se a Ciência dá fartas respostas para quanto era incompreensível no tempo do cavaleiro Antonius Block?

Resta a questão da morte e de algo prosseguir num mirífico além. Em tempos alimentei alguma ansiedade por saber-me condenado ao Nada. Até sentir como muito natural a resposta dada por Saramago no documentário do Miguel Gonçalves Mendes, com o vento de Lanzarote a fazer-lhe esvoaçar as melenas: hoje está-se cá, amanhã deixa de se estar. E não há nenhum drama por tal suceder!

Temos, porém, o filme, objeto maravilhoso enquanto proposta estética com Block e seu escudeiro a percorrerem a devastada paisagem em que a peste vai dizimando figurantes. Ainda não era Sven Nykvist a assumir a direção da fotografia, mas Gunnar Fischer fez trabalho exemplar. E há essa tentativa de se enganar a Maldita numa partida de xadrez, quando é incontornável a rendição que a ela todos acabamos por manifestar... 

terça-feira, maio 07, 2024

Histórias Exemplares (XXVI) - O outro lado do “sonho”

 

O amrican way of life ainda é sonho suficientemente atrativo para milhares de latino-americanos partirem ao assalto do Rio Grande: mas, nos anos sessenta, quando foi uma das primeiras mulheres a lecionarem na Universidade de Detroit na mesma altura em que a cidade melhor personificava esse tal sonho fundamentado na pujança da sua indústria automóvel, Joyce Carol Oates dedicou os primeiros romances ao tema, que permaneceria latente em toda a sua obra: não existe coincidência entre as promessas de uma sociedade ferozmente capitalista e o que ela remunera aos que a fazem funcionar. Daí que Joyce não tenha ficado surpreendida com a revolução de 1967, quando Detroit ficou a ferro e fogo por causa da desilusão dos que se sentiram enganados.

Them, que publicou em 1969, é um dos títulos mais interessantes dessa época em que demonstrou a impossibilidade da classe trabalhadora alcançar o paraíso. 

Histórias Exemplares (XXV) - Os malefícios do turismo

 

Em poucos dias surgem várias notícias sobre protestos de diversas comunidades  - nas Canárias, no Japão - contra os turistas, que as visitam em invasivas hordas ruidosas. Tanto mais que os benefícios dessa atividade distribuem-se muito desigualmente por quem as integra. Daí que cresça, em diferentes latitudes, uma tendência para limitar o acesso aos que pensam alcançá-las.

Uma das imagens mais impressionantes do rasto deixado por esses visitantes nos sítios por onde passam é a do video rodado por sherpas sobre as montanhas de lixo acumuladas nos Himalaias. É que, chegados ao cume e tiradas as fotografias para mostrarem aos amigos das redes sociais, os “alpinistas” só pensam em livrar-se do peso do que carregaram até ao cume - mormente as garrafas de oxigénio! - e deixá-las no caminho de regresso...

Os que venham atrás, que aguentem com o incómodo de procurarem melhor sítio onde pousarem os pés...

segunda-feira, maio 06, 2024

Apontamentos Cinéfilos (VIII): Paixão, Margarida Gil, 2010

 

O tema tinha motivos para me entusiasmar: pode recriar-se o desejo adolescente de um amor fusional? E havia duas cauções complementares: a de ter Maria Velho da Costa a colaborar nos diálogos e dois muito estimáveis atores  - Ana Brandão e Carloto Cotta - a protagonizarem uma história de sequestro capaz de dar explicação plausível para o síndrome de Estocolmo.

Confesso ter gostado de Paixão sem me entusiasmar o suficiente para o reservar no compartimento cerebral das obras memoráveis. Porque, como pressupõe Luísa Costa Gomes, tudo nele é inesperado, nada sucedendo de acordo com os estereótipos a que os modelos mainstream nos habituaram e, por isso, nos vemos abalados com o imperativo de pensarmos pela nossa cabeça (olha, que chatice!).

Será que o problema com o filme não está nele - obra mais do que meritória! - mas na preguiça mental imposta por horas e horas a ver coisas bem menos interessantes?

Essa é uma das questões sugeridas por este tempo presente, que dispersa-nos a atenção por tantos estímulos em simultâneo, que não dedicamos a necessária concentração para quanto mereceria ponderação demorada. Porque a história desta cantora lírica a viver um luto recente tem a ver com o amor, a ausência do(s) Outro(s) e com a falta de explicação para tudo quanto torna imprevisíveis os dias e os condiciona de uma forma, que não tem reversibilidade tangível. E também sobre o vazio interior de quem, vendo-se involuntário foco da obsessão alheia, nela julga descobrir a resposta para dar sentido ao que não andava a ter até então.