Tarefa difícil o do cineasta que se atreva a adaptar para o cinema o universo narrativo de Mia Couto. Se a paisagem moçambicana o pode ajudar, bem como o imaginário das suas gentes, é impossível traduzir em fotogramas a magia de uma linguagem, principal matéria usada pelo escritor para gerar singular sortilégio em quem o lê. Por isso, na questão de qual resulta melhor, o livro ou o filme, o cineasta, fadado para tal tarefa, sai sempre a perder.
Contudo, João Ribeiro assumiu o desafio com coragem e sensibilidade. Em “O Último Voo dos Flamingos” o realizador não tentou competir com a prosa poética de Mia Couto, mas encontrar uma linguagem cinematográfica própria que honrasse o espírito da obra original. O resultado é um filme que, longe de trair o romance, estabelece com ele um diálogo respeitoso e criativo.
A história, situada numa aldeia moçambicana onde soldados das Nações Unidas explodem misteriosamente, mantém no filme toda a sua força alegórica. Ribeiro soube captar a essência do realismo mágico coutiano, capacidade única de fazer coexistir o quotidiano e o fantástico, o político e o poético. As imagens da savana africana, filmadas com uma beleza contemplativa, tornam-se cúmplices desta atmosfera onde o inexplicável ganha naturalidade.
O realizador conseguiu preservar a crítica social do romance. A presença dos capacetes azuis, as tensões pós-coloniais, o choque entre modernidade e tradição – tudo isto surge no filme sem didatismo, através de uma narrativa que privilegia a sugestão sobre a explicação. É nisto que Ribeiro mais se aproxima do estilo de Mia Couto: na capacidade de depuração, de fazer pensar através da emoção.
Naturalmente, algumas das nuances linguísticas do escritor moçambicano perderam-se na transposição. As invenções lexicais, os jogos de palavras, a musicalidade da prosa – elementos centrais na obra de Mia Couto – resistem à tradução visual. Mas o filme compensa estas perdas com outras descobertas: a fotografia evocativa, uma banda sonora que mistura tradição e contemporaneidade, interpretações que captam a humanidade complexa das personagens.
“O Último Voo dos Flamingos” cinematográfico não substitui a experiência da leitura, nem o pretende. Antes propõe uma experiência complementar, um outro olhar sobre o mesmo universo poético. João Ribeiro compreendeu que adaptar Mia Couto não significava reproduzir fielmente cada página, mas sim encontrar equivalências cinematográficas para a sua visão do mundo.
O filme funciona assim como uma homenagem inteligente, que reconhece as limitações do meio cinematográfico face à riqueza verbal do original, mas soube descobrir as próprias potencialidades expressivas. É esta honestidade criativa que faz de “O Último Voo dos Flamingos” um diálogo interessante com a versão literária. Ambos coexistem sem se anularem mutuamente. Cada um oferece a sua perspetiva sobre um Moçambique onde o real e o mágico se entrelaçam, onde a História se escreve também através dos pequenos gestos e silêncios eloquentes. E nisso, pelo menos, tanto Mia Couto como João Ribeiro saíram vencedores.
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