Le Clézio é um dos meus escritores preferidos, razão para a enorme alegria quando o Nobel o galardoou. Abordo cada livro seu sem pressas, absorvendo-lhe as palavras, e o que contam, com a disponibilidade de serem tão valiosas quanto o é um vinho especial para um escanção diletante.
Publicado em 2006, dois anos antes do Nobel, "Raga - Abordagem do Continente Invisível" insere-se na fase mais madura da obra de Le Clézio. Se a escrita inicial era experimental e formal, a partir de meados dos anos 70, o autor voltou-se para os povos e culturas marginalizadas, na busca da humanidade mais autêntica e primordial, longe dos excessos da civilização ocidental. O livro culmina esta longa jornada de viajante e observador, iniciada com a estadia no Panamá junto dos índios Embera e Wounaan.
Le Clézio faz-nos sentir a realidade dos lugares que descreve. Em "Raga" mergulha no arquipélago de Vanuatu, uma nação remota no Pacífico, e confronta o leitor com uma verdade dolorosa que ele próprio salienta: se a África é o continente esquecido, a Oceânia é o continente invisível. É uma invisibilidade que não se deve apenas à distância geográfica, mas à falta de interesse e à exploração histórica que a marcou.
Através da sua guia, Charlotte, Le Clézio penetra na vida quotidiana da ilha de Raga (também conhecida como Aorea), onde constata uma sociedade de paradoxos. Por um lado, há a profunda ligação do povo com a terra e a tradição; por outro, não ignora a violenta dominação do homem sobre a mulher, um tema que aborda com sensibilidade e sem julgamentos fáceis, preferindo compreender as raízes culturais desse desequilíbrio.
O autor detalha as práticas e as crenças que moldam a vida local. O artesanato específico passado de geração em geração surge como testemunho da memória coletiva e da riqueza cultural. Cada objeto não é apenas um adorno, mas uma narrativa viva, um repositório de conhecimentos e técnicas que resistem à passagem do tempo e à ameaça da globalização. Através destas peças, Le Clézio lê a história do povo, a sua cosmovisão e resiliência.
O clímax da sua observação é o relato dos saltos no vazio, um ritual de fertilidade e de passagem ao estado adulto. Conhecido como nanggol, este salto, agarrado a lianas, é uma recriação dos mitos fundadores da ilha e um ato de coragem suprema. Os saltadores, movidos pela fé e pela tradição, atiram-se de torres de madeira com lianas amarradas aos tornozelos, aterrando a poucos centímetros do chão. O autor descreve não apenas a fisicalidade do ato, mas o profundo simbolismo: é a celebração da virilidade e da força do homem, mas também uma oferta à terra para que esta seja fértil. Le Clézio capta a essência do evento, que é ao mesmo tempo uma demonstração de domínio sobre o medo e uma humilde súplica à natureza.
Contudo, "Raga" não é apenas um relato de beleza e rituais. É também um livro de denúncia. Le Clézio recorda o passado sombrio das ilhas, marcado pela escravatura de homens raptados por navios australianos — os "blackbirders" — para trabalharem nas plantações de algodão do Queensland. Estes homens, forçados a uma vida de servidão, foram arrancados às famílias e nunca mais se teve notícias deles. O autor expõe esta brutalidade, resgatando a memória de um genocídio histórico que muitas vezes é esquecido pelos manuais de história ocidentais.
Em "Raga", Le Clézio não escreve apenas sobre um lugar exótico, pois utiliza a escrita como uma ferramenta para dar voz aos que não a têm, tornando visível o que a nossa civilização insiste em ignorar. É uma obra que une a sensibilidade poética de um escritor com o rigor etnográfico de um observador atento, resultando numa leitura que é ao mesmo tempo um deleite estético e uma chamada de atenção para a fragilidade de culturas ancestrais.
Sem comentários:
Enviar um comentário