quinta-feira, julho 10, 2025

Carmina Burana de Carl Orff: o legado de uma ambiguidade

 

No dia em que assinalamos os 130 anos do nascimento de Carl Orff, a 10 de julho de 1895, somos confrontados com uma fascinante e perturbadora ambivalência na história da música do século XX: a audição de "Carmina Burana". Para muitos, a obra é uma explosão de vitalidade e ritmos contagiantes; para outros, carrega o pesado fardo da sua ligação ao regime nazi, levantando escrúpulos que persistem até hoje.

Não é que haja uma mensagem ideológica explícita na obra – os textos medievais falam de temas universais como o destino, a natureza e os prazeres, mas a sua estreia e ascensão meteórica à popularidade em 1937, sob o Terceiro Reich, colocam-na num contexto problemático.

O regime de Hitler, na busca por uma "nova" cultura alemã "pura" e não "degenerada" (em oposição à música de compositores judeus ou modernistas), encontrou em "Carmina Burana" um aliado inesperado. A obra de Orff, com a sonoridade robusta, ritmos vigorosos e apelo a uma certa "primitividade" e força, encaixava-se, de forma perigosa, na estética que os nazis tentavam promover.

Embora Orff não fosse membro do partido ou ideólogo, a sua música foi instrumentalizada. A popularidade de "Carmina Burana" serviu como poderosa cortina de fumaça, desviando a atenção da perseguição e supressão de outras formas de arte e artistas. A obra era apresentada como um exemplo da capacidade criativa e da "nova vitalidade" alemã, reforçando a narrativa de um povo forte e profundamente ligado às raízes. Os temas universais, como a inevitabilidade do destino na "O Fortuna", podiam ser perversamente reinterpretados para ressoar com a crença nazi num destino grandioso e inabalável para a Alemanha.

É precisamente essa instrumentalização e a forma como a obra foi acolhida e se interligou com os valores propagandísticos do regime que geram o desconforto. Ouvir "Carmina Burana" não é apenas apreciar uma peça musical, mas também confrontar-se com a sua história de apropriação por um regime hediondo.

Os escrúpulos são uma manifestação da nossa consciência histórica. Eles lembram-nos que a arte não existe num vácuo e que a sua receção e utilização podem carregar um peso moral significativo. Embora não retire o brilho musical da composição, compreender esse contexto é crucial para uma audição informada e crítica de "Carmina Burana", especialmente neste dia que marca o aniversário de seu criador. 


terça-feira, julho 08, 2025

"Rutger Hauer: Like Tears in Rain" de Sanna Fabery de Jong: uma vida e memórias perdidas

 

O documentário "Rutger Hauer: Like Tears in Rain" tocou-me de uma forma inesperada, mais do que a simples apreciação pela vida de um ator. A revelação de que Rutger Hauer tinha a obsessão por filmar cada momento da sua vida ressoou comigo por reconhecer-me nessa mesma pulsão – a necessidade visceral de cobrir em fotografia e em filme tudo o que eu e a Elza vivemos. Era a forma de tentar fixar a felicidade, os desafios, a simples beleza do quotidiano partilhado.

Contudo, a ironia do tempo e da vida manifesta-se cruelmente: boa parte desses testemunhos preciosos perderam-se na confusão da montanha de caixotes guardados na cave, para os quais, honestamente, nunca encontro tempo suficiente para organizar.

Essa perda física complementa a fragilidade da memória, que encaro de forma tão trágica, especialmente no que diz respeito à Elza. O documentário de Hauer, com a reflexão sobre o "não se perderem" os momentos – uma alusão direta à sua inesquecível fala em "Blade Runner" – faz-me questionar se regressar a essas fotografias e fotogramas não será, por vezes, um paliativo ilusório. As lágrimas na chuva que se perdem no tempo são um eco potente da incapacidade em reter tudo, de fazer o passado permanecer intacto.

Há ainda uma curiosa similitude de percurso com Rutger Hauer que o filme trouxe à mente: a sua juventude na marinha mercante. Enquanto ele passou apenas um ano nesse ambiente que foi, ainda assim, determinante na formação no fim da adolescência, também eu, ao longo de 24 anos, fiz vida no mar, numa jornada que moldou muito do que sou. São essas ligações inesperadas que nos mostram como as experiências humanas, por vezes, se entrelaçam de formas que nunca imaginaríamos.

E, por fim, a constância do amor de Rutger por Ineke ao longo da vida. Essa dedicação espelha a minha própria experiência, pois o amor pela Elza foi, e é, a força mais constante e significativa da minha existência.

A perspetiva de Rutger Hauer sobre si próprio – o sentir-se subestimado enquanto ator – contrasta com a minha visão do passado. Não me sinto subestimado, nem sobrestimado no que fiz. Limitei-me a desempenhar o melhor possível o que foi aparecendo, profissionalmente, academicamente, e em qualquer outro  desafio que a vida me apresentou. Porque verdadeiramente, o que mais interessava, e onde sinto que fiz o meu melhor, foi amar a Elza. Essa é a verdadeira medida de um legado: a memória que verdadeiramente importa e que, essa nunca se perca. 

sábado, julho 05, 2025

"Os Diários de Thomaz de Mello Breyner" de Manuel Mozos e Luis Correia: abordagem unilateral com impacto na narrativa histórica

 

O documentário "Os Diários de Thomaz de Mello Breyner" desafia a forma como a história é apresentada, particularmente quando o protagonista detém uma visão do mundo notoriamente enviesada.

Thomaz de Mello Breyner era, sem dúvida, um monárquico fervoroso, um sidonista convicto e um crítico acérrimo dos líderes republicanos da sua época. Depois, com naturalidade, seria confesso salazarista. A sua perspetiva, fielmente registada nos diários, é inegavelmente reacionária, contrastando fortemente com os valores e as ideologias que moldariam a sociedade portuguesa de hoje.

A questão central que se coloca é como esta "apologia" a uma figura com tal pendor ideológico pode ser o trabalho de entidades como a Lx Filmes, e de realizadores como Manuel Mozos e Luís Correia cuja reputação imporia o contributo para uma narrativa mais diversa.

O documentário falha precisamente no que seria crucial para equilibrar a balança: a ausência de contraponto. Ao dar primazia exclusiva à voz de Thomaz de Mello Breyner, com fortes convicções monárquicas e observações depreciativas sobre os republicanos, a produção opta por uma abordagem unilateral. Em vez de confrontar ou contextualizar criticamente essas posições com perspetivas contrárias, ou análises históricas alternativas, o documentário limita-se a reproduzi-las.

A presença de Manuel Wiborg e, crucialmente, de Maria João Avillez na narração só fundamenta esta discussão. Enquanto a voz de Manuel Wiborg, ator reconhecido, poderia ser vista como uma escolha artística, a participação de Maria João Avillez, de conhecidas posições políticas, reforça a apreensão. Esta escolha de narradores pode, inadvertidamente ou não, validar e amplificar a perspetiva já unilateral do protagonista monárquico.

Para quem valoriza a pluralidade de vozes na construção da narrativa histórica e espera uma abordagem que estimule o pensamento crítico, a ausência de perspetivas contrárias é lacuna significativa. Comprometer-se com uma história rica e multifacetada exige a coragem de apresentar e debater as várias facetas de um período, incluindo aquelas que desafiam as narrativas dominantes.

Em suma, embora os diários de Thomaz de Mello Breyner sejam uma fonte histórica valiosa, apresentá-los sem vozes e ideologias que lhes eram opostas representa uma oportunidade perdida para um documentário verdadeiramente abrangente e crítico que escape a esta glorificação de uma visão reacionária.

 

sexta-feira, julho 04, 2025

Um viajante com causas

 

Há pessoas que nascem vocacionadas para a ação. Enquanto uns dão-se mais ao estilo meditativo, quiçá melancólico, pretexto para a passividade, há quem não se compadeça com a realidade, a queira aprofundar e, se possível, transformar.

Patrick Leigh Fermor foi uma força da natureza que personificou a aventura, o intelecto e uma sede insaciável por desvendar os mistérios do mundo. A sua vida não foi um mero percurso, mas uma série ininterrupta de explorações, geográficas, culturais e humanas, que o distinguiram como um dos mais interessantes viajantes e prosadores do século XX.

Desde cedo, Leigh Fermor evitou a estagnação: aos 18 anos decidiu caminhar de Roterdão até Constantinopla. Não foi apenas uma viagem física, mas uma odisseia de autodescoberta e imersão cultural. Cada palmo percorrido era um convite ao encontro com o desconhecido, à absorção das paisagens, línguas e costumes que moldariam a sua visão de mundo. Essa "Grande Caminhada" foi o prelúdio para a vida de aventura que se seguiria, e mais tarde transformaria em literatura de viagens como "Tempo de Dádivas" e "Entre os Bosques e a Água".

A sede de ação encontrou o auge durante a Segunda Guerra Mundial quando mergulhou no coração do conflito, alistando-se na Special Operations Executive (SOE) britânica.

As ações em Creta, onde viveu disfarçado e colaborou ativamente com a resistência grega contra a ocupação nazi, são dignas dos mais arrojados romances de espionagem. O rapto do General alemão Heinrich Kreipe em 1944, proeza audaciosa de planeamento e execução, cimentou-lhe a reputação de homem de ação ao estilo de um "James Bond da vida real".

A guerra não foi um período de espera, mas um palco para a intervenção direta, para a tentativa de moldar a realidade através de atos corajosos e decisivos.

Mas a ação de Leigh Fermor não se limitou aos feitos militares. As viagens e a escrita revelaram-no como observador e participante ativo na tapeçaria das vidas que encontrava. Ao explorar o Peloponeso na obra "Mani", não se limitou a descrever paisagens. Mergulhou na história, nas lendas e nas vidas dos habitantes locais, procurando compreender e capturar a essência de uma cultura.

A prosa vívida e erudita foi a ferramenta com que dissecou e apresentou a realidade aos leitores, tornando-os cúmplices na jornada de descoberta. Cada frase, cada descrição significou o ato deliberado de comunicar, de partilhar o que via e sentia, num esforço ativo para enriquecer o mundo através do conhecimento e da beleza.

Ele não esperou que a vida lhe acontecesse: foi ao seu encontro, desafiou-a, compreendeu-a e, através da escrita, transformou-a em algo acessível e inspirador. 

terça-feira, julho 01, 2025

"O Mal Amado" de Fernando Matos Silva: A Autoridade Paterna como Extensão do Regime

 

"O Mal Amado", de Fernando Matos Silva, tal como outras obras do Cinema Novo Português da mesma época, oferece uma perspetiva crucial sobre o papel do pai de família e a intrínseca ligação ao culto do chefe imposto pelo Estado Novo. Nestes filmes, a figura paterna transcende o âmbito doméstico, tornando-se uma representação microcósmica da autoridade e dos valores propagados pelo regime de Salazar e, mais tarde, de Marcelo Caetano.

No contexto do Estado Novo, o pai de família era o pilar da estrutura social e moral, espelhando a hierarquia e o autoritarismo que o próprio regime incutia. Este era um modelo patriarcal reforçado pela propaganda oficial, que promovia a ordem, a disciplina e a obediência cega – valores que se esperava fossem replicados no seio familiar.

Em "O Mal Amado", o personagem de Soares, pai de João, é um exemplo paradigmático. Sendo um funcionário público zeloso e com influências, ele não só encarna a pequena burguesia que se conformava com o sistema, como também utiliza a posição e contactos para tentar controlar o percurso do filho. A preocupação em arranjar um emprego para João antes da tropa, e a tentativa de o direcionar para um caminho "seguro", demonstram a sua autoridade enquanto chefe de família, mas também como agente da ordem e da estabilidade preconizadas pelo regime. Ele representa a figura que procura manter o status quo e, de certa forma, impede a autonomia e o espírito crítico da geração mais jovem, características que a censura tentava suprimir.

O Cinema Novo Português dissecava muitas vezes esta figura de autoridade, expondo-a nas suas contradições e limitações. Explorava-se o desencanto, a frustração e a asfixia social provocadas por um sistema que se estendia desde o topo da hierarquia política até ao interior dos lares.

Através de personagens como o pai de João, estes filmes revelavam a pequena burguesia aprisionada em que muitos destes pais de família, embora detentores de alguma autoridade, eram também vítimas de um sistema que lhes limitava as perspetivas e os forçava a uma conformidade sufocante. A autoridade era, muitas vezes, mais uma imposição de um modelo de vida do que uma escolha genuína.

A rigidez paterna entrava em choque com as aspirações de liberdade e as inquietações de uma juventude que questionava a Guerra Colonial, a falta de oportunidades e a ausência de liberdade. O pai tornava-se, assim, o guardião de um sistema que os mais novos ansiavam derrubar.

Ao mostrar as fissuras na autoridade paterna e as reações dos filhos, estes filmes, de forma subtil, abriam caminho para a ideia de que a ordem estabelecida podia ser questionada e, eventualmente, subvertida.

"O Mal Amado" e outros filmes do Cinema Novo Português, ao abordarem este e outros temas, não só espelhavam o culto do chefe do Estado Novo, mas também revelavam as suas fissuras e as sementes da contestação que iriam florescer com a Revolução de Abril. Eram filmes que, com coragem e sensibilidade, davam voz às tensões de uma sociedade à beira da transformação.