terça-feira, julho 01, 2025

"O Mal Amado" de Fernando Matos Silva: A Autoridade Paterna como Extensão do Regime

 

"O Mal Amado", de Fernando Matos Silva, tal como outras obras do Cinema Novo Português da mesma época, oferece uma perspetiva crucial sobre o papel do pai de família e a intrínseca ligação ao culto do chefe imposto pelo Estado Novo. Nestes filmes, a figura paterna transcende o âmbito doméstico, tornando-se uma representação microcósmica da autoridade e dos valores propagados pelo regime de Salazar e, mais tarde, de Marcelo Caetano.

No contexto do Estado Novo, o pai de família era o pilar da estrutura social e moral, espelhando a hierarquia e o autoritarismo que o próprio regime incutia. Este era um modelo patriarcal reforçado pela propaganda oficial, que promovia a ordem, a disciplina e a obediência cega – valores que se esperava fossem replicados no seio familiar.

Em "O Mal Amado", o personagem de Soares, pai de João, é um exemplo paradigmático. Sendo um funcionário público zeloso e com influências, ele não só encarna a pequena burguesia que se conformava com o sistema, como também utiliza a posição e contactos para tentar controlar o percurso do filho. A preocupação em arranjar um emprego para João antes da tropa, e a tentativa de o direcionar para um caminho "seguro", demonstram a sua autoridade enquanto chefe de família, mas também como agente da ordem e da estabilidade preconizadas pelo regime. Ele representa a figura que procura manter o status quo e, de certa forma, impede a autonomia e o espírito crítico da geração mais jovem, características que a censura tentava suprimir.

O Cinema Novo Português dissecava muitas vezes esta figura de autoridade, expondo-a nas suas contradições e limitações. Explorava-se o desencanto, a frustração e a asfixia social provocadas por um sistema que se estendia desde o topo da hierarquia política até ao interior dos lares.

Através de personagens como o pai de João, estes filmes revelavam a pequena burguesia aprisionada em que muitos destes pais de família, embora detentores de alguma autoridade, eram também vítimas de um sistema que lhes limitava as perspetivas e os forçava a uma conformidade sufocante. A autoridade era, muitas vezes, mais uma imposição de um modelo de vida do que uma escolha genuína.

A rigidez paterna entrava em choque com as aspirações de liberdade e as inquietações de uma juventude que questionava a Guerra Colonial, a falta de oportunidades e a ausência de liberdade. O pai tornava-se, assim, o guardião de um sistema que os mais novos ansiavam derrubar.

Ao mostrar as fissuras na autoridade paterna e as reações dos filhos, estes filmes, de forma subtil, abriam caminho para a ideia de que a ordem estabelecida podia ser questionada e, eventualmente, subvertida.

"O Mal Amado" e outros filmes do Cinema Novo Português, ao abordarem este e outros temas, não só espelhavam o culto do chefe do Estado Novo, mas também revelavam as suas fissuras e as sementes da contestação que iriam florescer com a Revolução de Abril. Eram filmes que, com coragem e sensibilidade, davam voz às tensões de uma sociedade à beira da transformação. 

Sem comentários: