No dia em que assinalamos os 130 anos do nascimento de Carl Orff, a 10 de julho de 1895, somos confrontados com uma fascinante e perturbadora ambivalência na história da música do século XX: a audição de "Carmina Burana". Para muitos, a obra é uma explosão de vitalidade e ritmos contagiantes; para outros, carrega o pesado fardo da sua ligação ao regime nazi, levantando escrúpulos que persistem até hoje.
Não é que haja uma mensagem ideológica explícita na obra – os textos medievais falam de temas universais como o destino, a natureza e os prazeres, mas a sua estreia e ascensão meteórica à popularidade em 1937, sob o Terceiro Reich, colocam-na num contexto problemático.
O regime de Hitler, na busca por uma "nova" cultura alemã "pura" e não "degenerada" (em oposição à música de compositores judeus ou modernistas), encontrou em "Carmina Burana" um aliado inesperado. A obra de Orff, com a sonoridade robusta, ritmos vigorosos e apelo a uma certa "primitividade" e força, encaixava-se, de forma perigosa, na estética que os nazis tentavam promover.
Embora Orff não fosse membro do partido ou ideólogo, a sua música foi instrumentalizada. A popularidade de "Carmina Burana" serviu como poderosa cortina de fumaça, desviando a atenção da perseguição e supressão de outras formas de arte e artistas. A obra era apresentada como um exemplo da capacidade criativa e da "nova vitalidade" alemã, reforçando a narrativa de um povo forte e profundamente ligado às raízes. Os temas universais, como a inevitabilidade do destino na "O Fortuna", podiam ser perversamente reinterpretados para ressoar com a crença nazi num destino grandioso e inabalável para a Alemanha.
É precisamente essa instrumentalização e a forma como a obra foi acolhida e se interligou com os valores propagandísticos do regime que geram o desconforto. Ouvir "Carmina Burana" não é apenas apreciar uma peça musical, mas também confrontar-se com a sua história de apropriação por um regime hediondo.
Os escrúpulos são uma manifestação da nossa consciência histórica. Eles lembram-nos que a arte não existe num vácuo e que a sua receção e utilização podem carregar um peso moral significativo. Embora não retire o brilho musical da composição, compreender esse contexto é crucial para uma audição informada e crítica de "Carmina Burana", especialmente neste dia que marca o aniversário de seu criador.
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