sábado, setembro 28, 2024

Notas de Rodapé (XIII) - Revelar ou não o cupido eis a questão

 

Na polémica sobre qual a versão mais interessante do quadro pintado por Vermeer na juventude, e ao qual a restauração, apresentada em 2020, devolveu a imagem de Cupido originalmente existente na parede por trás da rapariga, que lê uma carta à janela, não sei qual escolher.

Indubitável existir essa figura alegórica no quadro do pintor holandês e que as análises com recurso à imagiologia confirmam só dele ter sido apagada já ele há muito desaparecera do mundo dos vivos. Por uma questão de fidelidade ao artista e até por dar leitura mais precisa à sua intenção, parece óbvia ser essa a opção mais legítima.

Acontece que, desde a recuperação do injusto esquecimento em que Vermeer caíra, sempre conhecêramos o quadro com a parede lisa por trás. E, convenhamos que melhor sobressai assim a figura nele representada. Sem a distração do querubim é quase exclusivamente nela, que recai o nosso olhar. Efeito, igualmente, conseguido com a cortina que, nesse início do século XVIII, passou a ser tão frequente na pintura flamenga ocultando motivos, que pudessem distrair os espetadores para quanto os artistas pretendiam valorizar.

É possível que o autor do desvirtuamento da obra original tenha pretendido isso mesmo: sujeitando-se aos imperativos da sua época (provavelmente algures no século XIX, quando o quadro estava na corte do rei da Polónia e eleitor de Dresden) tenha pretendido essa valorização da rapariga indo ao encontro do que Vermeer fizera com muitos dos seus quadros posteriores: facilitar o olhar sobre a obra, dela secundarizando o que não seria essencial. E, de facto, olhando para ela como agora se nos apresenta, convirá reconhecer que a rapariga algo se dilui no quarto em que lê a carta à janela... 

quarta-feira, setembro 25, 2024

Histórias Exemplares (XIL): Registar o que há na memória enquanto ela dura

 

1. Nem sequer o facto de ser cuidador da Elza, e por isso mostrar-me mais tentado a encarar com compaixão quantos se veem a braços com a trágica realidade das demências, me leva a aceitar a tentativa de desculpabilização de António Lobo Antunes a propósito do que disse sobre José Saramago.

João Céu e Silva di-lo irreconhecível, até já dissociado do identitário vício do cigarro, mas a realidade vai-me dando conta de uma circunstância: a doença tende a aprofundar o que já era característico da personalidade de quem a sofre. Por isso a Elza revela uma doçura comovente e premeia os amigos com contagiante sorriso, porque sempre para eles foi atenciosa e prestável.

No caso do sempre preterido candidato ao Nobel o testemunho dos que lamentam o seu estado (e também eu o subscrevo!) não iludem a confirmação daquela constatação, mas na outra face da moeda. O azedume de que dava contas quando denegria a escrita do autor de Memorial do Convento não pode justificar-se apenas pela doença: esta apenas o incrementou...

2. Se há quem perca a memória, e abandone a escrita, há quem, por estes dias, no-la confie sob a forma de livros acabados de sair das máquinas de impressão e pelos quais podemos conhecer melhor os passados vividos por quem os assina.

Em Bambino a Roma Chico Buarque dá conta da Itália dos inícios dos anos 50, quando o pai foi aí lecionar numa universidade. Já li os quatro primeiros capítulos e são excelentes: sem floreados, ele dá-nos a conhecer uma época distante em que tudo era tão diferente. E que nos ajuda a compreender as circunstâncias em que cresceu e se tornou num dos mais respeitados intelectuais do nosso tempo.

Por seu lado Fernando Pereira Marques  conta-nos a História da LUAR, movimento político a que pertenceu e onde militavam homens de indómita coragem como foi o caso de Hermínio da Palma Inácio.

Embora nunca me tenha sentido tentado a integrar essas hostes também fui um jovem adolescente imbuído do desejo da revolução (socialista), que dá título à obra. E, por ela, ficamos a saber mais sobre aquela que foi a época mais exaltante das nossas vidas. Ou não tenha sido no seu decurso que eu e a Elza decidimos juntar os trapinhos para sempre... 

sábado, setembro 21, 2024

Notas de Rodapé (XII) - Os caçadores caçados

 

Volto amiúde a esta história por nunca me cansarem as histórias contadas por António Cartaxo, e ainda conservadas no RTP Play. E sempre me rio com a surpresa de uns quantos incautos caçadores (ou aspirantes a tal!) que terão descido o Chiado e vislumbrado a capa de um livro prometedor para as suas expetativas: A Caça aos Coelhos.

Julgariam que iriam obter ensinamentos imprescindíveis para melhor alvejarem os leporídeos e, por isso, prontamente esgotaram aquela edição!

Imagine-se a sua surpresa quando chegaram a casa e abriram as primeiras páginas dando de caras com um opúsculo assinado pelo compositor Fernando Lopes Graça a alinhar argumentos para desconchavar Rui Coelho quanto aos méritos e deméritos das contraditórias posições de ambos perante a forma de encarar a música erudita. Graça, influenciado pelas teses de Bela Bartok apostava numa evolução estética, que dava as conceções do compositor oficial do regime salazarista como completamente fora do seu prazo de validade.

Conservador e fervoroso nacionalista, Coelho pusera-se a jeito ao alimentar nos jornais uma polémica, onde lhe faltavam os apoios da intelectualidade de então, mas lhe garantiriam as reconhecidas tenças do Estado Novo.

Mas, quase por certo desconhecedores de quem era o autor do texto e o seu verberado opositor, os caçadores ter-se-ão sentido ludibriados nas expetativas e dado como perdidos os escudos tão rapidamente desembolsados.

sexta-feira, setembro 20, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XIX): Um desastre hitchcockiano

 

Dura pouco mais de uma hora o filme de 1932, que Alfred Hitchcock odiava, considerando-o um desastre: Número Dezassete.

Baseado numa peça teatral, e quase todo passado no espaço restrito de uma casa abandonada onde se encontram uns quantos personagens, que nada têm a ver com ela, mas, voluntariamente ou não, acabam por comungar do interesse de um colar roubado, o filme é tão prenhe em inverosimilhanças, que desconfiamos sem sequer os atores saberem o que ali estão a fazer.

Ademais não sabemos se por autoria dos argumentistas (entre o quais se contava a senhora Hitchcock!), se do próprio realizador quis-se, através do personagem do sem-abrigo, “apimentar” a intriga com uma vertente cómica, que resulta entre o patético e o simplesmente pateta.

Há a curiosidade dos enquadramentos, da iluminação e adjacentes sombras, que manifestam o interesse de Hitch pelo então pujante expressionismo alemão, mas sentindo-se obrigado a curvar-se aos ditames dos produtores, ele poria aqui, enquanto realizador, um ponto final na sua ligação à British International Pictures. Ainda faltaria meia dúzia de anos até perspetivar o salto para além-Atlântico onde ganharia outras asas...

A haver uma questão sobre qual o seu pior filme este Número Dezassete teria boas hipóteses de ser assim considerado. 

terça-feira, setembro 17, 2024

Notas de Rodapé (XI) - Visitar Saint Thomas e desconhecer quem ali nascera

 

Os acasos da vida fizeram com que  Charlotte Amalie, nas Ilhas Virgens, fosse o primeiro porto caribenho, que conheci. Tinha vinte anos, e como tenaz maoísta, achei curiosa a dualidade entre a pobreza de uns e o cosmopolitismo de poucos outros (algo comum a todos os outros destinos aí conhecidos, desde Aruba a Guadalupe, de Granada a São Domingo!), mas desconhecia ter sido ali que Camille Pissarro nascera em 1830. Aliás, na época, pouco me interessavam os impressionistas, porque Picasso ou Miró me eram bem mais sugestivos.

Não sei se existiam ou não indícios da infância e juventude do pintor ali. Conhecesse-lhe a biografia e encontraria, provavelmente, a sinagoga frequentada pela família de comerciantes em que o pai o destinava a sucedê-lo no comando dos negócios familiares. O mesmo templo, que recusara celebrar o casamento de Lucien Pissarro com Jeanne Rachel só porque ela já fora casada - e entretanto enviuvara! - o que contradiria os preceitos da Tora.

Justificar-se-ia assim o feitio fortemente anticlerical e anarquista do futuro artista.

Escusando-se a seguir a vontade do pai para o futuro profissional, Pissarro dedicara-se à pintura por influência de Fritz Melbye, que conhecera aos onze anos, e lhe legara boa parte do saber de paisagista. Será este a facilitar-lhe a definitiva emancipação da família e o regresso a Paris - onde estudara num colégio interno - para dedicar-se exclusivamente à vocação. Mas, nessa altura, já criara várias obras, ainda muito diversas das que viria a conceber depois, mormente as que teriam por tema a capital francesa à chuva e que tanto influenciariam os que o secundariam na tão determinante revolução estética.

segunda-feira, setembro 16, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XVIII): À Beira do Abismo (1946) e o fascínio de uma história incompreensível

O filme passa esta noite na ARTE e, mesmo dobrado em francês, não limita o prazer dado pelas interpretações de Bogart e Bacall. Porque se as vozes faziam parte da genuinidade desses desempenhos, muito mais o eram os olhares ou as posturas corporais.

Hawks, o realizador, confessou não ter compreendido a coerência do argumento, carpinteirado em oito dias por  William Faulkner, Leigh Brackett e Jules Furthman a partir de um romance de Raymond Chandler. Por isso decidiu trabalhar cada cena, tornando-a o mais divertida possível, dada a incapacidade de qualquer do autor ou dos incumbidos da adaptação lhe justificarem porque deveriam ser mortos alguns dos personagens.

À partida há um general, que contrata Philip Marlowe para procurar o genro desaparecido e livrar uma das filhas da chantagem a que a sujeita um sujeito mais que duvidoso. Pelo meio cruza-se com o detetive a outra filha do general, Vivian, que tem dívidas de sobra no casino local.

O chantagista aparece morto com Carmen completamente bêbeda ao lado mas, nessa altura, já Marlowe anda às voltas com uma realidade, que tende a ser diferente do que parece e em que Vivien parece dele fazer gato sapato até por o ter pelo beicinho. Daí ser o tipo de filme que se vê, e revê, com grande prazer. 


quarta-feira, setembro 11, 2024

Histórias Exemplares (XXXIX): O último concerto de Arthur Rubinstein

 

Foi uma lição de vida, que Daniel Barenboim confessa dele ter colhido: a aceitação do inevitável - sem “ses” - para ser-se feliz. 

Arthur Rubinstein continua a ser uma referência incontornável do piano e o seu concerto de despedida, em abril de 1975, quando estava à beira de cegar, é um documento notável, que merece ser fruído com a devida atenção. E, no entanto, confesso não ter Chopin entre os meus compositores de eleição, por o conotar com o lado mais lamechas do romantismo. Mas a interpretação do concerto para piano nº2, opus 21, nega esse sentimentalismo piegas, que vemos assumido por muitos dos intérpretes atuais.

“Ele tocava como um aristocrata polaco”, diz o mesmo Barenboim, que o teve quase como um pai substituto ao facultar-lhe o primeiro cigarro e o primeiro vodka aos catorze anos. E o via a ler Dostoievski em russo, Baudelaire em francês, Shakespeare em inglês ou o Quixote em espanhol.

Homem de profunda cultura conseguiu demonstrar como o piano poderia ao mesmo tempo insinuar uma conversa e uma musicalidade na história por ele contada com a partitura de um compositor. Por isso, sabendo-se prestes a perder muitas das suas faculdades apostou na filmagem da interpretação desta peça, que sempre o acompanhara, para dela dar a sua versão definitiva ... e superlativa! 

terça-feira, setembro 10, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XVII): Terra Selvagem (2017) a querer alertar para o estupro e assassinato de ameríndias

 

Wind River de Taylor Sheridan, adota uma formatação convencional: há um homem experiente (caçador de predadores no Wyoming) e uma polícia, acabada de sair da formação do FBI, associados na investigação ao homicídio de uma rapariga numa reserva Arapohe.

Cory Lambert descobrira-a coberta de neve e com sinais de estar a fugir de algo terrível, que a estaria a perseguir. Ele, que perdera a filha três anos atrás em circunstâncias ainda por apurar, vê-se a apoiar uma representante da lei pouco preparada para as dificuldades da vida selvagem num dos territórios mais agrestes da América do Norte. Sobretudo por provirem dos humanos os maiores perigos para a sobrevivência dos que ali se arriscam.

Nessa forma estandardizada de abordar a intriga policial há um meritório propósito no realizador e argumentista: chamar a atenção para o grave problema das mulheres estupradas e assassinadas nas reservas índias, que nem sequer merecem a definição estatística da sua dimensão. De facto só a partir de 2022 é que o FBI passou a ter suporte legal para capturar quem pratica esses homicídios. Que, até ver, continuam a acontecer...

Jeremy Renner e Elizabeth Olsen são competentes nos desempenhos de um filme onde ainda podemos encontrar interesse na banda sonora com temas de Nick Cave. Mas reconheçamos que, apesar de ter passado em Cannes na secção Un Certain Regard, o filme é daqueles que facilmente se esquecem...