terça-feira, setembro 17, 2024

Notas de Rodapé (XI) - Visitar Saint Thomas e desconhecer quem ali nascera

 

Os acasos da vida fizeram com que  Charlotte Amalie, nas Ilhas Virgens, fosse o primeiro porto caribenho, que conheci. Tinha vinte anos, e como tenaz maoísta, achei curiosa a dualidade entre a pobreza de uns e o cosmopolitismo de poucos outros (algo comum a todos os outros destinos aí conhecidos, desde Aruba a Guadalupe, de Granada a São Domingo!), mas desconhecia ter sido ali que Camille Pissarro nascera em 1830. Aliás, na época, pouco me interessavam os impressionistas, porque Picasso ou Miró me eram bem mais sugestivos.

Não sei se existiam ou não indícios da infância e juventude do pintor ali. Conhecesse-lhe a biografia e encontraria, provavelmente, a sinagoga frequentada pela família de comerciantes em que o pai o destinava a sucedê-lo no comando dos negócios familiares. O mesmo templo, que recusara celebrar o casamento de Lucien Pissarro com Jeanne Rachel só porque ela já fora casada - e entretanto enviuvara! - o que contradiria os preceitos da Tora.

Justificar-se-ia assim o feitio fortemente anticlerical e anarquista do futuro artista.

Escusando-se a seguir a vontade do pai para o futuro profissional, Pissarro dedicara-se à pintura por influência de Fritz Melbye, que conhecera aos onze anos, e lhe legara boa parte do saber de paisagista. Será este a facilitar-lhe a definitiva emancipação da família e o regresso a Paris - onde estudara num colégio interno - para dedicar-se exclusivamente à vocação. Mas, nessa altura, já criara várias obras, ainda muito diversas das que viria a conceber depois, mormente as que teriam por tema a capital francesa à chuva e que tanto influenciariam os que o secundariam na tão determinante revolução estética.

segunda-feira, setembro 16, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XVIII): À Beira do Abismo (1946) e o fascínio de uma história incompreensível

O filme passa esta noite na ARTE e, mesmo dobrado em francês, não limita o prazer dado pelas interpretações de Bogart e Bacall. Porque se as vozes faziam parte da genuinidade desses desempenhos, muito mais o eram os olhares ou as posturas corporais.

Hawks, o realizador, confessou não ter compreendido a coerência do argumento, carpinteirado em oito dias por  William Faulkner, Leigh Brackett e Jules Furthman a partir de um romance de Raymond Chandler. Por isso decidiu trabalhar cada cena, tornando-a o mais divertida possível, dada a incapacidade de qualquer do autor ou dos incumbidos da adaptação lhe justificarem porque deveriam ser mortos alguns dos personagens.

À partida há um general, que contrata Philip Marlowe para procurar o genro desaparecido e livrar uma das filhas da chantagem a que a sujeita um sujeito mais que duvidoso. Pelo meio cruza-se com o detetive a outra filha do general, Vivian, que tem dívidas de sobra no casino local.

O chantagista aparece morto com Carmen completamente bêbeda ao lado mas, nessa altura, já Marlowe anda às voltas com uma realidade, que tende a ser diferente do que parece e em que Vivien parece dele fazer gato sapato até por o ter pelo beicinho. Daí ser o tipo de filme que se vê, e revê, com grande prazer. 


quarta-feira, setembro 11, 2024

Histórias Exemplares (XXXIX): O último concerto de Arthur Rubinstein

 

Foi uma lição de vida, que Daniel Barenboim confessa dele ter colhido: a aceitação do inevitável - sem “ses” - para ser-se feliz. 

Arthur Rubinstein continua a ser uma referência incontornável do piano e o seu concerto de despedida, em abril de 1975, quando estava à beira de cegar, é um documento notável, que merece ser fruído com a devida atenção. E, no entanto, confesso não ter Chopin entre os meus compositores de eleição, por o conotar com o lado mais lamechas do romantismo. Mas a interpretação do concerto para piano nº2, opus 21, nega esse sentimentalismo piegas, que vemos assumido por muitos dos intérpretes atuais.

“Ele tocava como um aristocrata polaco”, diz o mesmo Barenboim, que o teve quase como um pai substituto ao facultar-lhe o primeiro cigarro e o primeiro vodka aos catorze anos. E o via a ler Dostoievski em russo, Baudelaire em francês, Shakespeare em inglês ou o Quixote em espanhol.

Homem de profunda cultura conseguiu demonstrar como o piano poderia ao mesmo tempo insinuar uma conversa e uma musicalidade na história por ele contada com a partitura de um compositor. Por isso, sabendo-se prestes a perder muitas das suas faculdades apostou na filmagem da interpretação desta peça, que sempre o acompanhara, para dela dar a sua versão definitiva ... e superlativa! 

terça-feira, setembro 10, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XVII): Terra Selvagem (2017) a querer alertar para o estupro e assassinato de ameríndias

 

Wind River de Taylor Sheridan, adota uma formatação convencional: há um homem experiente (caçador de predadores no Wyoming) e uma polícia, acabada de sair da formação do FBI, associados na investigação ao homicídio de uma rapariga numa reserva Arapohe.

Cory Lambert descobrira-a coberta de neve e com sinais de estar a fugir de algo terrível, que a estaria a perseguir. Ele, que perdera a filha três anos atrás em circunstâncias ainda por apurar, vê-se a apoiar uma representante da lei pouco preparada para as dificuldades da vida selvagem num dos territórios mais agrestes da América do Norte. Sobretudo por provirem dos humanos os maiores perigos para a sobrevivência dos que ali se arriscam.

Nessa forma estandardizada de abordar a intriga policial há um meritório propósito no realizador e argumentista: chamar a atenção para o grave problema das mulheres estupradas e assassinadas nas reservas índias, que nem sequer merecem a definição estatística da sua dimensão. De facto só a partir de 2022 é que o FBI passou a ter suporte legal para capturar quem pratica esses homicídios. Que, até ver, continuam a acontecer...

Jeremy Renner e Elizabeth Olsen são competentes nos desempenhos de um filme onde ainda podemos encontrar interesse na banda sonora com temas de Nick Cave. Mas reconheçamos que, apesar de ter passado em Cannes na secção Un Certain Regard, o filme é daqueles que facilmente se esquecem...