sábado, agosto 31, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XVI): Brasch, o desejo e o medo (2011)

 

Nunca dei particular atenção à obra de Thomas Brasch, que enquadrei naquele grupo de dissidentes este-alemães, que nem gostavam do regime do seu lado, nem do capitalista, cujas delícias não vislumbraram, quando mudaram de geografia.

Foi sem grande expetativa, que iniciei a apreciação do documentário sobre ele realizado por Christoph Rüter como resultado das conversas trocadas durante cerca de vinte anos, e de muitos documentos de arquivo por ele consultados e reproduzidos. Confirmando-se o que já sabia sobre esse escritor e cineasta, autor de obra volumosa mal conhecida, e com origens judaicas sentidas como um estigma a questionar, mormente sobre a forma como a memória da Shoah é utilizada e transmitida. E, no entanto, ele era filho de um dos principais responsáveis políticos da RDA usufruindo de uma educação privilegiada como era a facultada à sua futura elite.

O que está em causa em Brasch é o individualismo, que a nada conduz. Por isso, e até ao seu desaparecimento em novembro de 2001, sempre o assombraram medos incuráveis a par do desejo de uma transformação política e social para a qual a sua obra em nada contribuiu.

Por muito que tenha contestado essa realidade, não se vislumbra alternativa a que sejam as ações coletivas a contribuírem para a resolução das injustiças do mundo atual. Há, por isso, lutas espúrias, que na melhor das hipóteses a nada conduzem e, nos casos mais trágicos, acabam por beneficiar os mesmos do costume... 

Notas de rodapé (X) - Especulações que o tempo dissipa

 

Revisito amiúde o excelente trabalho jornalístico que Joaquim Furtado fez sobre a Guerra Colonial sob a forma de quatro séries televisivas em que ouviu os testemunhos dos que nela foram protagonistas.

A distância, porém, vai relativizando muitas das questões, que deixa em aberto. Por exemplo, quando aborda a tentativa do regime se recauchutar ao ponderar-se a substituição de Américo Tomás por Spínola, quando este ainda andava a procurar uma solução habilidosa para a anunciada derrota na Guiné-Bissau.

Teria valido isso de alguma coisa a Marcelo Caetano, que perdera definitivamente as veleidades do tempo em que ousara afrontar Salazar aquando da crise académica de 1962? Teimando numa vitória militar, que se ia esfumando como inócua miragem, não se adivinha fácil uma possível coabitação entre dois umbigos tão inchados quanto o tinham o presidente do Conselho e o governador da Guiné-Bissau. O mais certo seria o regime acelerar o estertor, que só teve fim no dia 25 de abril de 1974.

Igualmente espúria a discussão sobre a responsabilidade pela morte de Amílcar Cabral. Numa altura em que o mesmo Spínola procurava explorar as rivalidades nacionalistas entre os povos da Guiné e os de Cabo Verde de pouco importa se Nino Vieira estaria ou não por trás do assassinato do líder o PAIGC. Morrendo de forma tão violenta o antigo presidente de um país, que continua a vogar ao sabor dos interesses alheios aos dos seus cidadãos, terá levado a verdade consigo para a cova.

É verdade que um dos seus familiares participou nesse homicídio, mas poderemos ser acusados pelas vilanias dos que connosco partilham os apelidos? Maior certeza é esta: não tivesse Alpoim Galvão levado por diante a Operação Mar Verde e a probabilidade de não ter existido esse crime seria bastante maior. No fundo não pode deixar-se de atribuir aos militares portugueses, e à muito ativa Pide/DGS, a efetiva responsabilidade pelo assassinato daquele que era um respeitado político africano.

sexta-feira, agosto 30, 2024

Histórias Exemplares (XXXVIII): Dos benefícios de mudança de ares

 

Agora que as férias algarvias já passaram, olho para a fotografia colhida por Irving Penn em Cuzco em 1948 e nela - e noutras do mesmo portfolio! -   encontro fundamento na conhecida tese de quanto as viagens podem ser intimamente transformadoras.

Atenhamo-nos às circunstâncias em que ela foi possível: nesse pós-guerra Penn já era um dos principais fotógrafos de moda da revista Vogue quando deslocou-se a Lima para um conjunto de imagens focadas muma das principais modelos de então, garantindo assim a exótica originalidade.

Concluído o trabalho voou para a antiga capital inca e, vencido o torpor das alturas dos primeiros dias, passou a interessar-se pelos rostos e expressões corporais de quem ali vivia. Em vez dos famosos, que já por ele se faziam retratar, era a gente do povo a interessá-lo num registo antropológico, que continuaria a interessá-lo nos anos seguintes, quando convocou trabalhadores de várias geografias a posarem perante a câmara a fim de testemunharem os seus ofícios

Menos conhecida do que os seus retratos mais icónicos, essa vertente da obra não deixa de ser ilustrativa de outros caminhos criativos, que a viagem a Cuzco pareceu anunciar... 

terça-feira, agosto 20, 2024

No tempo em que tinha as graças do mar (I) - Nova Iorque, fins dos anos setenta

 

Ao ler o dossier da Visão sobre Nova Iorque lá vem a habitual ladainha sobre a criminalidade nos anos 70 e 80 e o subsequente elogio ao trumpista Rudy Giuliani que, com meios musculados, devolveu a “lei e a ordem” à cidade.  Se é que alguma vez a havia tido!

Curiosamente foi por essa altura - andava nos vinte anos! - que ali estive pela primeira vez. Era jovem oficial no navio petroleiro Inago e, porque trabalhava por turnos, acordei uma manhã para ir almoçar indo à vigia para dar com uma ponte, que os entaramelados olhos quiseram ver como a sobre o Tejo.

Por breves instantes julguei ter cavalgado no tempo e estar à beira de voltar a abraçar a Elza com quem casara há um par de anos e por quem a saudade sempre foi incomensurável durante as marítimas ausências.

Afinal, olhando mais para o lado, primeiro para as recém-inauguradas Torres Gémeas, depois para a Estátua da Liberdade, concluí termos entrado no rio Hudson de que nos sabíamos próximos, quando concluíra o quarto da meia-noite às quatro da madrugada.

Porque a estadia se prolongou por uns dias pude depois fazer as primeiras descobertas da cidade. Nomeadamente a célebre Rua 42 que, com expressão lasciva, o enfermeiro Calado, classificava como a mais debochada existente no mundo.

Não foi por essa altura que descobri os excelentes museus (Guggenheim, Metropolitan ou MoMA), que viria a descobrir depois. E não fiquei alheio à latente violência, que significou ver a marca de sangue e do desenho a giz de um corpo no Union Park onde, com alguns colegas, me aprestava para fazer um piquenique. Ou o cheiro a droga no piso inferior do ferry entre Manhattan e Staten. Ou ainda um amedrontado polícia acoitado numa lavandaria do bairro italiano numa noite em que as ruas estavam desertas, a maioria das estações de metropolitano fechadas e os carros passavam a grande velocidade a nosso lado.

Porque era jovem, e porventura inconsciente, pouca importância dei aos perigos, que se anunciavam numerosos. Sei que gostei bastante da cidade, que coincidia com a dos filmes então do meu agrado como era o caso do scorcesiano Taxi Driver.

Da última vez que ali voltei a cidade estava diferente, ao que diziam mais segura - justificando descontraídas surtidas noturnas para ver um musical na Broadway ou beber um gin tonic numa cave onde músicos de jazz tocavam standards! - mas perdera a aura de trinta e cinco anos atrás. Ainda era Nova Iorque, mas sem a magia cinéfila que nela identificara. Até por ter a Trump Tower como um dos seus mais emblemáticos símbolos, mesmo não imaginando que o dono viria a ser aquilo que sabemos...

sábado, agosto 17, 2024

Notas de rodapé (IX) - gelo e cerejeiras

 

1. Sempre me fascinaram os incipits literários ou musicais, que identificam uma obra. O Era uma vez, que a ela dá início como sucede num dos romances da minha vida, o Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez em que muito se adivinha em palavras inesquecivelmente ligadas: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.”

Na crónica de Dulce Maria Cardoso na Visão desta semana a escritora consegue algo de aproximado a essa ideia de síntese de um texto subsequente, quando propõe: “Em Luanda era habitual céu e terra zangarem-se para logo de seguida fazerem as pazes. A chuva despejava-se torrencial, mas não tardava que o sol aparecesse— um sorriso funguento, limpa lágrimas - até se tornar abrasador.”

2. Fascina-me, igualmente, a ligação dos japoneses ao efémero, embora nunca tenha coincidido as minhas estadias no Japão com esse final de março, início de abril, em que as cerejeiras selvagens ficam em flor.

Hélas, porque assim perdi, o testemunho da obsessão nipónica por esse conceito de recomeço, que leva os noivos a marcarem o casamento para essa altura a fim de se fazerem fotografar sob o fundo branco das flores nas árvores. Esperando que saiam certas as previsões dos biólogos pagos para estudarem criteriosamente as árvores e acertarem na data precisa em que, por breves duas semanas, proporcionam um cenário de impactante beleza. Lembrando quão breves são os momentos de magia na vida... 

quarta-feira, agosto 14, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XVI): A Rapariga da Fonte, que não o era propriamente!

 

Se Federico Fellini me  motiva sentimentos contraditórios - gostei de tantos dos seus filmes, mas nunca esqueci o quanto se conotou politicamente com a Democracia Cristã (apesar de tanto satirizar o clero!)! - Anita Ekberg nem tanto.

Recordo, obviamente, a cena na Fonte de Trevi, que justifica o título do documentário que, sobre ela, Antongiulio Panizzi assinou em 2021, mas, nem me deixei fascinar pela sua tão propalada beleza, nem muito menos me impressionaram os dotes de atriz.

Embora tenha querido ser sempre dona da sua vida bastaram as escolhas conjugais - um primeiro conjugue mais interessado nas garrafas de whisky do que nela, e um segundo que tudo lhe roubou! - para concluir que a sensatez não era propriamente das suas maiores virtudes.

Razão para duvidar que uma abordagem da biografia e filmografia da sueca pudesse resultar em algo de interessante. Panizzi procurou encontrar a quadratura do círculo convidando Monica Bellucci para a encarnar no filme, sabendo à partida o quanto as opunha, quer fisicamente—uma loira de olhos claros, a outra uma mediterrânica morena -, quer no feitio. Mediante esse artificio o realizador quis abordar o papel da mulher na arte cinematográfica, mormente quando a idade tende a forçar a precoce reforma, ou ao deixar-se enredar num estereotipo de que não seja capaz de se livrar.

Talvez por não sentir empatia com a biografada não me rendi à caução feminista implícita no artifício comparativo com o pensamento da ícone italiana. A hora que o exercício dura nada vale em comparação com os minutos em que Fellini a pôs a romper as águas da fonte romana com as possantes coxas...