sexta-feira, agosto 31, 2018

(DL) «O Senhor Brecht e o sucesso» de Gonçalo M. Tavares (2004)


O início não  é muito prometedor: Apesar de a sala estar praticamente vazia o senhor Brecht começou a contar as suas histórias.” E se elas são surpreendentes! Logo na primeira, «Um país agradável», temos a preguiça a apossar-se de quem nele habita, a tal ponto que não ´há quem se disponha a combater os sucessivos invasores, que vão chegando em sucessivas ocasiões até deixar aquele espaço densissimamente povoado, enquanto à volta passava a reinar o vazio. Razão para o novo presidente ordenar o sentido contrário: a invasão dos territórios adjacentes. Mas a característica inicial mantinha-se e ele viu-se sozinho quando avançou para lá das fronteiras. Temos, pois, um conto com preocupações evidentes a nível filosófico por cuidar de idiossincrasias coletivas com as suas inércias próprias, indiferente a qualquer voluntarismo de sentido contrário.
Essa lógica prossegue na história seguinte com um desempregado a perder sucessivamente uma mão, e depois outra em troca de novos empregos, que lhe garantissem o alimento dos filhos. Razão tão ponderosa justificativa da mesma passiva concordância mesmo quando lhe exigiram a cabeça para lhe atribuírem nova oportunidade. Há depois o pássaro atingido sucessivamente por balas, que lhe impossibilitavam o voo, instando-o a reciclar-se em cantor. Ou o homem mal-educado, que nunca tirava o chapéu nas ocasiões em que o deveria fazer e, por isso mesmo, condenado à guilhotina, só então se percebendo não ser aquele adorno a encimar-lhe a cabeça, mas era esta a ter o feitio daquele.
Há também o gato, que imitava tão bem o guinchar dos ratos, que os atraía enganadoramente para garantir refeição certa. Até ao dia em que o iludido foi um gato bem maior, que logo o mata e come, espantando-se com o tamanho do «rato», que caçara. Mais adiante aparece o caso de uma manicura a quem a alteração política do país garante novo emprego: a de amputadora de dedos aos prisioneiros.
O nonsense está presente na mulher gorda que decide perder peso, pedindo ao médico a amputação da perna ou a avaria na cadeira elétrica, que justificara a troca de funções: o carrasco sentava-se no assento e o prisioneiro movimentava a alavanca, recebendo nesse gesto a descarga mortal.
A relatividade dos conceitos surge na história onde, em vez de uvas, são diamantes a adornarem os cachos das vinhas, levando os donos à exasperação: eles que tanto ansiavam pelos frutos, só lhes cabia as malfadadas pedras brilhantes. Há também a livraria com cem mil exemplares à venda, todos do mesmo livro, e com os clientes a cirandarem entre as prateleiras indecisos quanto ao número do exemplar a comprar.  Ou o país onde nos céus imperou um colorido arco-íris durante um ano, razão para a exclamação de júbilo de quem, perante um céu enfim cinzento, o ajuizou extremamente bonito.
Num registo crítico surge o engano da agência de viagens, que fez aterrar os passageiros num país em guerra, não suscitando neles qualquer estranheza, porque logo se puderam tirar fotografias aos cadáveres espalhados pela rua.
Contadas cinquenta histórias, “o senhor Brecht olhou em redor. A sala estava cheia. As pessoas eram tantas que tapavam a porta. Como poderia agora sair dali?”

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