Dois documentários - o de Heather Lenz sobre Yayoi Kusama (Kusama Infinito, 2018) e o de Ricardo Clara Couto sobre Isabel Meyrelles (O Dragão que fuma, 2022) - reforçam-me a dúvida sobre se o talento artístico não depende de uma singularidade, que pressupõe a superação de muitos códigos comportamentais tidos como normais.
Embora as duas artistas em causa não possam ser mais opostas na forma como se relacionam com os outros - uma procurando-lhes quase desesperadamente o reconhecimento, a outra borrifando-se completamente para tal! - coincidem numa alteridade, que explica porque uma se refugiou numa instituição psiquiátrica e a outra privilegiou a solidão do exílio cansada de um país salazarento, que nem o 25 de abril conseguiu alterar na sua substância identitária.
Os documentários em causa cumprem a função, mas são mais interessantes em questões subjacentes, mas não formuladas: porque são tão fascinantes as bolinhas da artista japonesa? porque cala, mais do que enuncia, a portuguesa as razões do distanciamento com o país?
À primeira, embora nada tendo a ver esteticamente com Miró ou Keith Haring, lembra-no-los quando a vemos como imanação de quem se escusou verdadeiramente a crescer, mantendo uma certa inocência infantil. A que também associamos Paula Rego embora nesta sobrem em pesadelos o que, nos referidos exemplos, identificamos como sonhos agradáveis.
Em Isabel Meyrelles existe a misantropia de quem se basta a si mesma por ter sentido que ser mulher implicara ver-se colocada à margem daqueles de quem se sentira mais próxima, como ocorreu com os surrealistas do seu país. Apesar de Cruzeiro Seixas lhe testemunhar o mérito de ter tido a paciência de lhe organizar a papelada e dela fazer emergir uma obra poética de outro modo dispersa caoticamente.
Num e noutro caso conjuga-se esse distanciamento da realidade social, que também é apanágio de tantos outros grandes artistas. Sê-lo implica assumir uma rutura com as convenções, que explica porque são tão efémeros os sucessos dos que, muito cedo, são promovidos a génios: mesmo que comercialmente lucrem com essa ilusão acabam condenados àquilo que a moda tem como regra, a de ser inevitavelmente passageira...