quinta-feira, dezembro 19, 2024

APONTAMENTOS CINÉFILOS: Tudo isto é triste, tudo isto é fado!

 

1. Não  aproveitei a estreia de Os Papéis do Inglês para ver o filme produzido por Paulo Branco, e realizado por Sérgio Graciano, para ilustrar o fascínio dessa personalidade admirável, que foi Ruy Duarte de Carvalho pelo deserto do Namibe.

Sei que a verei, provavelmente, na anunciada série televisiva, que lhe dilatará a abordagem, mesmo descontando a, provavelmente imerecida, desconfiança, que o realizador me suscita. Até por ter no elenco gente muito respeitável como o Miguel Borges, a Joana Ribeiro e, sobretudo, o João Pedro Vaz, que dizem ter desempenho superlativo.

Voltar aos tempos do colonialismo, quando Angola dava ao salazarismo a ilusão imperial, que nunca foi mais do que isso, é oportunidade para comprovar o que Alexandre O’Neill comentava quanto a sermos um país pobrete e nada alegrete: até nos sonhos de grandeza deixávamos que, quem desgovernava, nos infantilizasse com mentiras da dimensão da do Pai Natal agora aí tão disseminada para enganar pobres criancinhas, que depressa dele se vão apartar...

2. Costumo dizer que a predisposição ateísta foi-me quase concomitante com a compreensão das incongruências das estórias da Carochinha. Ainda não tinha entendimento bastante para descrer do deus católico por ter estuprado uma virgem e, depois, abandonado o filho - socorro-me desta imagem que, dias atrás me apareceu nas redes sociais e à qual achei graça! - mas intuí ser aquilo tão absurdo quanto depois acharia dos panteões hindus, que até teriam a vantagem de serem mais animados no seu colorido e musicalidade.

Quer isto dizer que, se raramente me decido render ao cinema como entretenimento - conceito que, em si, associo à da perda de tempo! - exijo pelo menos uma condição: ser bem feito!

Ora isso foi o que não encontrei em Ácido, o filme de Just Philippot, que conseguiu umas massas para desenvolver uma ideia já abordada previamente numa curta-metragem e, em 2023, ampliada para a ambiciosa dimensão de uma longa.

O enredo é simples: mistura uma situação distópica relacionada com as alterações climáticas - chuvas ácidas a devastarem sucessivas regiões francesas e belgas - com os desvarios afetivos de um protagonista (Michal interpretada por um Guillaume Canet revelado como insuportável canastrão!), dividido entre juntar-se à companheira na maternidade onde está prestes a dar à luz e o socorro à ex-mulher e à filha, que vai buscar aonde antes morara.

A miúda, sobretudo, é dada como uma revoltada, mas passa o tempo a gritar pelo papá, comportando-se com uma irracionalidade que gostaria não constituísse regra na geração agora com a idade dessa personagem. Embora convenhamos, que a tendência para aderirem às ideias do Chega ou da Iniciativa Liberal, demonstre serem afinal tão estúpidos quanto essa insuportável Selma.

Mas onde o filme pior se revela é na nula verosimilhança científica, como se Philippot quisesse enganar uns quantos totós dando-lhes algo, que qualquer pessoa com dois dedos de testa depressa conclui não fazer qualquer sentido.

E, no entanto, o aquecimento global é assunto demasiado sério para traduzir-se em mistificações tão tontas quanto a crença da terra plana para os respetivos prosélitos. Felizmente que a História do Cinema já conta com uns quantos títulos sérios sobre o tema dispensando-se de incluir este como hipótese de recurso.

Gente bem intencionada ainda defendeu a caução social no facto de, inicialmente, Michal estar em prisão domiciliária por ter ido legitimamente às fuças do patrão, e de se abordar o sempre atual tema da desagregação familiar mas, parafraseando a grande Lucília do Carmo, tudo isto é triste / tudo isto é fado.  Ou, por outras palavras: pelo que o filme mostra não é só o Portugal do filme do Graciano, que se revela pobrete e nada alegrete: a França macroniana, e futuramente lepeniana, não apresenta melhores expetativas.

sábado, dezembro 14, 2024

APONTAMENTOS CINÉFILOS: A Realidade Bruta tal qual Epstein a revelou

 

Os realizadores de cinema já recorreram a todos os cenários possíveis para situarem as suas histórias, mas houve quem não se limitasse a utilizá-los como décor, deles colhendo uma nova inspiração, uma metamorfose. Foi o que sucedeu a Jean Epstein - já então um dos grande nomes da vanguarda francesa - quando, em 1928, foi descansar do bulício parisiense para a ilha de Ouessant ao largo da Bretanha, e se deixou inspirar pelo que aí viu.

Decidiu então rodar aí o primeiro dos sete filmes, que situaria nessa região, reforçando a tendência para a afirmação de um novo tipo de cinema, depurado dos clichés dos profissionais, porque recorrendo a pequena equipa técnica e à população da ilha para preencher o elenco de atores e figurantes.

Finis Terrae, assim se chamaria esse filme, tem por protagonistas esses homens, nem inteiramente lavradores, nem pescadores, que passavam parte do ano a colher sargaços a algumas milhas da costa. O enredo cingia-se à sua luta contra as forças da Natureza, traduzidas em violenta tempestade, e na ansiedade das mulheres que, na praia, procuravam sinais do seu regresso a casa.

Embora com um conteúdo ficcional o filme constituiu um documento antropológico ao detalhar os gestos dos sargaceiros, algo que Epstein já vinha fazendo com outros mesteres, presentes nalguns dos doze filmes anteriores.

Não sendo ainda o neorrealismo ao jeito dos italianos do pós-guerra, Finis Terrae foi-lhe precursor ao representar aquilo que o realizador designou como “realidade bruta”. 

quarta-feira, dezembro 04, 2024

O BELO E A CONSOLAÇÃO: Um caldo primitivo de ocorrências

 

Os mistérios do tempo, do espaço e da matéria; foram os estímulos de Wim Kayzer para entrevistar Leo Lederman, que ganhou um Nobel, e poderia ter sido nomeado por mais quatro sólidas razões sendo tido como um dos grandes físicos do século XX. E que, professor nato, conseguia arrastar os que o ouviam para um universo até então aparentemente inacessível. Por traduzir em ideias simples, mas corretas, o que pretendia explicar.

Um dos aspetos, que mais me agrada na sua conceção do universo é a da insensatez de pretendermos encontrar-lhe uma origem, de querermos encontrar-lhe um objetivo como se fossemos o foco desse interesse “divino”.

Ele provou que o universo não é simétrico por ter emergido a partir de uma incomensurável quantidade de energia inicial nesse bilionésimo de bilionésimo de bilionésimo de segundo, que se convencionou designar por Big Bang, causando ilimitadas colisões de partículas e antipartículas primitivas, que se traduziram numa acelerada expansão e arrefecimento.

Se existisse simetria perfeita seriam iguais as quantidades de matéria e antimatéria, anulando-se uma à outra à medida que essa expansão e arrefecimento se produzisse, resultando num universo só feito de radiação com imensa luz, mas nenhuma matéria palpável. O rompimento com o quimicamente puro permitiu alguma assimetria residual, que somos nós e tudo quanto de palpável nos rodeia.

E esse facto era por ele definido como imensamente belo... e consolador por sabermos que a existência tem algo de imperfeito, que somos uma espécie de resíduos! 

terça-feira, dezembro 03, 2024

HISTÓRIAS EXEMPLARES: Seguramente um fenómeno sem relação com a moda

 


É com prazer sempre reiterado, que ouço as gravações de concertos dirigidos por Sergiu Celibidache. Para além do profundo conhecimento das obras o maestro romeno era conhecido pela intenção de dar-lhes a ouvir os mais preciosos detalhes num registo mais lento, que muito exigia dos instrumentistas. Daí que fizesse questão em ter mais ensaios do que eles estavam acostumados com outros titulares da batuta e lhes prodigalizasse explicações, senão mesmo ríspidos reparos na origem da sua fama de intratável para muitos deles. Embora outros o idolatrassem pela inaudita genialidade.

Terá sido esse feitio difícil, que lhe deu uma das maiores agruras da sua vida: em 1954 a orquestra da Filarmónica de Berlim votou em Herbert von Karajan para sucessor de Wilhelm Furtwängler, apesar de ter sido ele a, nos nove anos anteriores, ter-lhe comandado os destinos por afastamento daquele que, fiel seguidor dos nazis, se vira obrigado a passar por humilhante processo redentor.

No ano passado Philipp Quiring rodou um interessante documentário sobre essa desfeita, que levara Celibidache a prometer nunca mais  relacionar-se com a instituição, e relacionando-a com a reconciliação operada trinta e oito anos depois por influência do então presidente alemão Richard von Weizsäcker.

Os vários depoimentos e imagens de arquivo deixam implícita, mas não se focalizam numa evidência: enquanto Karajan apostou numa autopromoção, que o tornaram particularmente querido pelo público mais tentado pela frivolidade dos fenómenos de moda, Celibidache manteve-se fiel, até à morte em 1996, à austera e exigente fidelidade para com o que considerava a quinta essência da música erudita. Razão bastante para, em geral, trocar a generalidade das gravações de Karajan por uma de Celibidache. Mormente na 7ª de Bruckner, que integrou o programa do concerto de 1992. 

domingo, dezembro 01, 2024

APONTAMENTOS CINÉFILOS: Um destino particular

 

Entre une destinée particulière e o destino único, com que a RTP decidiu traduzir o título do documentário de Julia Bracher sobre a biofilmografia de Sophia Loren, vai uma distância, que menoriza o sentido do original, não só porque passa por cima da conotação da belíssima obra de Ettore Scola, a última deveras importante por ela protagonizada, mas também por dedicar-se a um percurso singular e improvável, logo justificado no incipit - a referência às exageradas dimensões do nariz, da boca, das ancas e da morena tez -, mas não faltarem exemplos de outros improváveis sucessos mediáticos de quem se transformou em símbolo sexual apesar das alegadas imperfeições.

O que singulariza Sophia Loren - para além do óbvio talento de representar tão convincentemente o papel de mãe extremosa quanto o de prostituta - é a liberdade da sua conduta, que nunca se formatou às convenções, quando acreditou nas prioridades de quem queria ser.

O documentário tem a vantagem de juntar peças de arquivo suficientemente eloquentes para confirmar a tese sobre a sua excecionalidade e não trata com pinças as polémicas com o Vaticano por causa da relação com Carlo Ponti, nem se furta à referência do concomitante romance com Cary Grant, com quem esteve também prestes a casar.

Seria pedir-lhe demais que se tivesse distanciado da irmã quando ela avançou para o casamento com o filho de Mussolini, dando-lhe a sobrinha, que se tornaria figura grada do neofascismo transalpino? Mas basta recordá-la na Ciociara, nas comédias de Vittorio de Sica, ou no filme de Scola para dela retermos o essencial: foi uma das grandes atrizes do século transato.