segunda-feira, julho 22, 2024

Histórias Exemplares (XXXVII): Manifesto pessoal sobre os bons e os maus romances

 

Entro a matar no terreno das confissões: nunca leio um só romance de fio a pavio, porque o alterno com mais uns dois ou três, e um ou outro ensaio, que tornam a mesa de cabeceira num minidepósito de livros. E um deles é sempre algo do tipo “literatura chiclete”, de consumir  e deitar fora, orientado para a capacidade de prender a atenção do leitor com estórias engenhosas, consistentemente desenvolvidas, e finais mais ou menos imprevisíveis.

Stephen King ou Henning Menkel são dois bons exemplos de horas de gulosa fruição, que dei por bem empregadas para melhor dedicar a outras em que o encadeamento das palavras, ou a construção das frases, ganha outro ritmo e sabor. Nenhum deles me elevando ao prazer conferido pelas páginas de um Saramago, Garcia Marquez ou Le Clézio, mas ajudando-me a perceber como se pode satisfazer a vontade de sermos recetores de boas histórias.

Agora ando a passar por uma má experiência, que me leva a, por uma vez, renunciar ao conselho do Truffaut sobre a inutilidade de escrever sobre coisas de que não gostamos por constituir manifesta perda de tempo. Mas, porque, ao fim de quatro ou cinco títulos sem grandes sobressaltos, nem deleites, me apareceu Mulheres que não perdoam de Camilla Läckberg, que me fez saltar a tampa quanto aos limites desta empresária no negócio dos investimentos mais ou menos especulativos, porventura decidida a compensar os riscos da atividade financeira com o manifesto talento para vender livros como pãezinhos.

No romance em causa três mulheres - Viktoria, Birgitta e Ingrid - comungam a vontade de se livrarem dos parceiros, que as agridem, humilham e abusam sexualmente trocando de alvos. Cada um dela mata o algoz de uma das outras defendendo-se com alibis inexpugnáveis.

Quanto à bondade da ideia não há nada a contestar: compreendem-se os desejos homicidas de quem se sente vítima de sádicos sem escrúpulos. Mas, comparando a forma como  Patricia Highsmith explorou essa ideia em O Desconhecido do Norte Expresso, a réplica da escrevinhadora sueca fica a léguas da norte-americana, que a terá inventado. Onde ficávamos enleados na dialética entre a convicção psicopata de Bruno e as torturadas dúvidas do arquiteto Guy Haines, não há aqui senão uma esquematizada descrição dos maus tratos a que se sujeitam as vítimas com a forma desajeitada, mas inverosimilmente eficaz como despacham as encomendas.

Para aferir , em definitivo, a capacidade de Camilla Läckberg em dar-me o devido entretenimento ainda lhe ando agora a ler Asas de Prata, que vai demonstrando as mesmas insuficiências. Embora saiba, que o lerei até ao fim, quanto mais não seja por ser verdadeira a frase de sempre termos a aprender com os bons ou os maus romances. Mesmo que por motivos diferentes nuns e noutros casos...

terça-feira, julho 16, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XV): Continuamos inquietos dez anos depois

 

Rever O inquieto, que Miguel Gomes estreou no ano do iminente dobre de finados sobre o passismo, implica perceber quanto a forma de o sentir não é muito diferente segundo aquilo que é a realidade em que nos movemos. No início deste ciclo AD adivinha-se que esta direita ainda não é a baleia moribunda dada à praia, mas deseja-se e pressente-se  que tenha o mesmo lamentável epílogo da do filme: que acabe por rebentar  de tão má que é!

No filme há muito do que oito anos de governos de António Costa não resolverem: a desindustrialização do país prosseguiu, mesmo sem o clamor mediático que a privatização dos Estaleiros de Viana do Castelo implicou.  E se não andam por aí os “homens de pau feito”, que mandavam empobrecer os portugueses para que os putativos donos melhor satisfizerem a ganância, a receita de Montenegro para comprar a relativa paz social faz ponderar na forte possibilidade de os ver regressar. E o desemprego ou o papel dos ciúmes na violência doméstica, nos fogos florestais e outras vicissitudes descontroladas são assunto que têm garantida atualidade, mesmo dez anos passados sobre os testemunhos dos três magníficos do filme.

Há sempre a possibilidade de um sindicalista adoentado imaginar redenções de ano novo. Nem que seja um banho de mar sem olhar para a fúria dos elementos à volta. A luta é, difícil, mas vale a pena continuar a assumi-la. Porque outra solução não há.

quarta-feira, julho 10, 2024

Histórias Exemplares (XXXVI) - Será que nós somos eles?

 

Eu pecador me confesso: também sinto incontornável fascínio pela história dos dinossauros. A tal ponto que, há já uns bons anos, quase tropecei na escadaria do Museu de História Natural em Londres, e vim de repelão por aí abaixo, quando entrámos na enorme sala onde se alinham gigantescos esqueletos de tiranossauros e outros répteis de há sessenta milhões de anos antes do malfadado asteroide ter vindo de encontro à Terra, assim anunciando o fim do Cretáceo.

Obviamente que não falhámos aos primeiros filmes passados no Parque Jurássico e logo comparecemos no parque da Lourinhã, quando ele abriu numa altura em que as nossas netas aqui passavam férias.

E, claro que, perante Dinosaur Apocalypse, um documentário recente de Matthew Thompson sobre aquele que teria sido o seu último dia, vi-me durante hora e meia perante o que nele se mostra a propósito de um prodigioso cemitério encontrado numas colinas do Dakota do Norte com os vestígios das vítimas dessa catástrofe planetária tão bem conservados quantos os sepultados em Pompeia.

Não é que as explicações do paleontólogo Robert DePalma comportem novidades de monta - o interesse está sobretudo na visualização concreta do que nos têm sugerido muitas ilustrações criativas! - mas somos obrigados a reconhecer que um poeta conhecido tinha alguma razão, quando considerava não terem, efetivamente, morrido os dinossauros: nós acabamos por sê-lo hoje em dia, quanto mais não seja porque, algures nesse mundo, andavam semiclandestinamente os que albergamos na nossa árvore genealógica... 

terça-feira, julho 09, 2024

Apontamentos Cinéfilos (XIV): Um irlandês irascível, mesmo que com sotaque muito british

Confesso que nunca fui grande admirador de Peter O’Toole. Seguramente - e ao contrário de muitos outros - nunca me estimulou a ida ao cinema para ver um dos seus papéis. Embora já o tenha revisitado várias vezes na pele de Lawrence da Arábia, mas isso porque foi apenas um dos bons argumentos, que tornam o filme de David Lean num monumento cinematográfico incontornável.

Foi, pois, com algumas reservas, que me pus a ver o documentário a ele dedicado por Jim Sheridan em 2022. Que confirmei na hora e meia que dura e, de acordo com os muitos testemunhos de quem o conheceu, se resume a isto: O’Toole era um irlandês, com sangue igualmente escocês, que trabalhou eficazmente o sotaque inconfundível de um presunçoso lord inglês. Brilhante ator shakespeareano tinha uma memória invejável, que o levava a decorar os diálogos das peças e dos filmes de fio a pavio. Mas era um bebedor sem freio, aqui e além também tentado pela cocaína. O que lhe fundamentava um feitio irascível que nos leva a lamentar, sobretudo, a triste sorte de Sian Phillips, a conjugue, também atriz, que muito lhe terá aturado.

Se T. H. Lawrence foi personalidade fascinante na sua misantropia tormentosa, O’Toole foi apenas um bom ator entregue aos desvarios de vícios vários, que nos dariam vontade de, acaso dele nos aproximássemos, logo nos pormos a largas milhas.