Que tipo de masoquismo pode ter um escritor, quando escolhe como protagonista do seu romance uma personalidade execrável, aquele tipo de criatura de quem nos apressaríamos a impor higiénica distância se a encontrássemos na vida real? Desconheço a motivação do autor de «A Ministra», mas adivinho o quanto terá sido difícil passar semanas com uma mulher tão despojada de qualidades, tudo nela sendo mesquinhez, calculismo, arrogância.
Miguel Real imaginou tal criatura a receber o convite do primeiro-ministro para integrar a sua equipa e a pedir uns dias de reflexão até dar a resposta, que já sabe vir a dar. Apenas pretenderá fazer-se difícil…
Nesses dias de ansiosa expetativa por ver a vida dar-lhe tão prodigioso salto, ela recorda todo o passado, desde a infância no Algarve até aos longos anos de professora na Universidade lisboeta.
Em miúda, ainda antes de testemunhar o assassinato da mãe às mãos do marido, que a apanhara em flagrante nos braços do amante, já ostentava um carácter perverso ao tomar como hobby preferido o arranque da cabeça das bonecas.
A adolescência será passada no orfanato, onde ganha a alcunha da «Encolhida», mas em que tudo faz para ganhar a afeição das freiras. Doravante ela saberá sempre identificar quem possui o poder nos sítios, que frequenta e como tirar vantagem de se lhe colar através da bajulação. É assim que conseguirá progredir rapidamente na carreira docente, copiando estatísticas de trabalhos estrangeiros e adaptando-os às realidades nacionais. Ninguém se apercebe que ela se limita a plagiar textos alheios e ela ganha renome como especialista de uma nova especialização da Sociologia fundamentada apenas nos indicadores quantitativos.
Se pela mão do ex-marido chegara à Universidade como assistente, depressa dali o desalojara para o Ensino Secundário, substituindo-o como professor de diversas cadeiras e doutorando-se sempre à custa da forma manhosa como se ia fazendo fraca perante os fortes (os catedráticos) e plagiando o mais habilidosamente possível trabalhos alheios.
Agora, aos cinquenta anos, vê-se desprezada pelos filhos, que preferem a companhia do pai e da nova esposa, por quem passara a nutrir um insuportável ódio de estimação. Politicamente os seus valores eram os do regime fascista, mesmo que disfarçando-os, ciente de quanto veria perigado tudo quanto conquistara se os assumisse sem pejo.
No ministério conta aplicar o seu programa de clara divisão entre as elites e as camadas mais empobrecidas da população às quais apenas pretenderia garantir os conhecimentos básicos para virem a servir de trabalhadores pouco qualificados numa economia baseada nas exportações de mercadorias com pouco valor acrescentado. Mas o que a compraz é viver por antecipação o gozo de ser vista pelos outros como pessoa poderosa, que nunca mais teriam vontade de menosprezar.
O problema é que virá a acontecer o que cedo adivinhamos: quando liga para o primeiro-ministro este pede-lhe muita desculpa, mas já decidira atribuir a pasta ministerial em causa a outra personalidade.
A ministra que o não chegara a ser vê-se condenada a passar o Natal a remoer o despeito de ter perdido uma tão soberana oportunidade para escamotear a sua efetiva mediocridade.
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