sábado, fevereiro 15, 2025

HISTÓRIAS EXEMPLARES: Uma praga exasperante e irracional

 

Ando amofinado com a indústria turística: apesar do interesse que teria em lá levar a Elza a passear deixámos de frequentar os bairros lisboetas, que viram os habitantes genuínos trocados pelos turistas dos alojamentos locais. Também já não sei há quanto tempo não entramos na Torre de Belém, ou nos Jerónimos, descoroçoado pelas filas de camones, que aí se aprestam a tomar de assalto os nossos monumentos. Também Sintra se tornou território proibido depois de, na última vez em que fomos ao Palácio da Pena, ter-nos sentido ovelhas conduzidas por estreito percurso como se direcionado para um qualquer redil.

Numa altura em que os termómetros denunciam o acelerado aquecimento do planeta a indústria turística é a mais irracional do ponto de vista ecológico. Por poucos euros as transportadoras low cost movimentam multidões, que parecem contentar-se em chegar aos sítios mistificados e recolher fotografias para, nas redes sociais, provar ter.se ali estado. Será que, no íntimo, isso satisfará os presumidos viajantes? É que; às tantas, esses sítios já nada têm de semelhante com quanto lhes deu a importância mediática. Vide o caso de Veneza sobre a qual o professor Carlos Cupeto, da Universidade de Évora, deu na Visão esta peculiar descrição:

A  alma de Veneza perdeu-se, a cidade converteu-se num parque temático tipo Disneylândia onde chineses vendem a outros chineses por um euro, máscaras venezianas fabricadas na China. Um exército de dezenas de milhões de turistas por ano torna a cidade dos sonhos românticos um inferno e os poucos venezianos que restam estão saturados e desiludidos. Os voos baratos e os cruzeiros levaram à extinção da cidade e as autoridades italianas não sabem o que fazer.

Há uns vinte e tal anos, quando ali estivemos da última vez, lembro-me de passarmos a ponte do Rialto com a sensação de nem sequer termos conseguido pousar os pés no chão levados pela multidão, que nos arrastava na sua corrente. Então colhera sensação mais grata escapulindo-me para as periferias da cidade, descobrindo aqueles bairros mais distantes da Praça de São Marcos, que os turistas não frequentavam. E aí sim ainda encontrámos a graça antiga da cidade, quer nos estaleiros de gôndolas do Dorsoduro, quer na ilha de San Michele vista ao virar de uma esquina onde se concluía um dos canais da cidade. E também foi possível estar à noite no Florian a ver o pequeno ensemble tocar as músicas mais apelativas da época numa altura em que a cidade se esvaziara dos seus invasores.

Hoje, pelo que posso adivinhar, nem nessas zonas se conseguirá escapar à exasperante praga.

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