terça-feira, fevereiro 25, 2025

APONTAMENTOS CINÉFILOS: O fascínio das imagens de arquivo

 

Se revi Ana e Maurizio, o documentário que Catarina Mourão estreou em 2020 sobre o percurso místico de Ana Marchand, não foi pela empatia com o fascínio da artista pela cultura hinduísta, nem tão pouco pelo que dela resulta nas exposições em que tem sido pródiga.

É evidente que todos os rituais associados ás crenças da reencarnação de uma suposta alma me parecem absurdos e não é a crença nessa ligação mais do que genética ao seu tio Maurizio Piscicelli, que me levam a embalar em mais uma história da carochinha.

Interessa-me, sim, o que caracteriza a obra da realizadora, uma vez mais estimulada  pela redescoberta da memória a partir das imagens de arquivo a que acedem alguns protagonistas dos seus filmes.

No caso de Ana Marchand tudo começa com um livro de viagens publicado por esse tio-avô há mais de um século e tendo o Congo como foco. Será ao aprofundar a vocação artística desse familiar, que ruma à Índia e nela encontra uma solução catártica para as suas confessas fragilidades: o distanciamento dos que tinham sido os valores em que fora educada, e a levara a quase ser tentada a uma vida convencional, para optar por uma alternativa de rutura, que teria, de permeio, uma experiência traumática (o suicídio de quem se sentia afetivamente ligada)

A “iluminação”, que as viagens pela Índia - as de Maurizio e as suas! - propiciariam , subentende-se como resposta a íntima necessidade de estruturar uma caótica sensação de perdas sucessivas ... e de autocomprazimento com a idealização da sua pessoa, já não cingida a ela mesma, mas enquanto fase transitória de sucessivos estágios até ao prometido desenlace libertador.

Confesso que o fascínio pelos retratos do passado - mormente os dos meus próprios familiares! - não radicam na mesma expetativa de descobrir-me a reencarnação de quem quer que seja. Como diria o Fernando Botero, sou único e em mim me extinguirei. Mas fica sempre a curiosidade quanto a saber quem seriam esses desconhecidos, que se foram reproduzindo, gerações após gerações, para deles surgir como rebento. 

terça-feira, fevereiro 18, 2025

APONTAMENTOS CINÉFILOS: Quando a vitória não é propriamente dos que parecem ganhar


É um filme a que apetece voltar amiúde por ser daqueles em que cada revisão traz novidades sobre quanto passara antes despercebido: Os Sete Samurais é uma belíssima obra-prima, que Akira Kurosawa rodos em 1954 e teve pálida réplica seis anos depois, quando John Sturges transferiu para o faroeste a mesma história: a de uma aldeia de pobres agricultores em vias de serem atacados por um miniexército de bandidos, socorrendo-se, em desespero de causa, de sete ronins, samurais sem patrão, que acedem a defendê-los em troca de comida.

Kurosawa é brilhante na forma como ilustra as tensões iniciais entre os camponeses e os que os vêm defender havendo entre uns e outros uma enorme diferença social de valores e mundividências.

É a luta de classes como não poderia deixar de ser. Mas, como tantas vezes sucedeu na História, todos  sacodem as contradições e convergem na defesa do interesse comum, para obterem a improvável vitória à chuva.

Essa fase final do filme é notável na forma como o realizador a fez possível numa época em que os efeitos especiais eram tão limitados. E, recorrendo a outras inovações - a menor não terá sido o recurso á câmara lenta - tornar-se-ia numa referência para tantos realizadores, que o incensaram como seu putativo formador.

Coppola foi um deles e tudo faria para dar a Kurosawa a possibilidade de rodar filmes numa altura em que, no Japão, o davam como artisticamente morto e enterrado. E algum do western spaghetti de Sergio Leone também nele colheria inspiração.

No rescaldo da vitória, Kambei, o chefe dos sete guerreiros, compreende que ela é pertença dos camponeses, porque os três sobreviventes são meros testemunhos de uma época que, nesse século XVI, começava a ser obsoleta. Sem o terem compreendido de início, os sete heróis concluíram com uma luta justa a condenada gesta  face à entrada em cena dos comerciantes europeus e o recurso às armas de fogo. 

sábado, fevereiro 15, 2025

HISTÓRIAS EXEMPLARES: Uma praga exasperante e irracional

 

Ando amofinado com a indústria turística: apesar do interesse que teria em lá levar a Elza a passear deixámos de frequentar os bairros lisboetas, que viram os habitantes genuínos trocados pelos turistas dos alojamentos locais. Também já não sei há quanto tempo não entramos na Torre de Belém, ou nos Jerónimos, descoroçoado pelas filas de camones, que aí se aprestam a tomar de assalto os nossos monumentos. Também Sintra se tornou território proibido depois de, na última vez em que fomos ao Palácio da Pena, ter-nos sentido ovelhas conduzidas por estreito percurso como se direcionado para um qualquer redil.

Numa altura em que os termómetros denunciam o acelerado aquecimento do planeta a indústria turística é a mais irracional do ponto de vista ecológico. Por poucos euros as transportadoras low cost movimentam multidões, que parecem contentar-se em chegar aos sítios mistificados e recolher fotografias para, nas redes sociais, provar ter.se ali estado. Será que, no íntimo, isso satisfará os presumidos viajantes? É que; às tantas, esses sítios já nada têm de semelhante com quanto lhes deu a importância mediática. Vide o caso de Veneza sobre a qual o professor Carlos Cupeto, da Universidade de Évora, deu na Visão esta peculiar descrição:

A  alma de Veneza perdeu-se, a cidade converteu-se num parque temático tipo Disneylândia onde chineses vendem a outros chineses por um euro, máscaras venezianas fabricadas na China. Um exército de dezenas de milhões de turistas por ano torna a cidade dos sonhos românticos um inferno e os poucos venezianos que restam estão saturados e desiludidos. Os voos baratos e os cruzeiros levaram à extinção da cidade e as autoridades italianas não sabem o que fazer.

Há uns vinte e tal anos, quando ali estivemos da última vez, lembro-me de passarmos a ponte do Rialto com a sensação de nem sequer termos conseguido pousar os pés no chão levados pela multidão, que nos arrastava na sua corrente. Então colhera sensação mais grata escapulindo-me para as periferias da cidade, descobrindo aqueles bairros mais distantes da Praça de São Marcos, que os turistas não frequentavam. E aí sim ainda encontrámos a graça antiga da cidade, quer nos estaleiros de gôndolas do Dorsoduro, quer na ilha de San Michele vista ao virar de uma esquina onde se concluía um dos canais da cidade. E também foi possível estar à noite no Florian a ver o pequeno ensemble tocar as músicas mais apelativas da época numa altura em que a cidade se esvaziara dos seus invasores.

Hoje, pelo que posso adivinhar, nem nessas zonas se conseguirá escapar à exasperante praga.

quinta-feira, fevereiro 06, 2025

HISTÓRIAS EXEMPLARES: Uma avalanche no Quirguistão

 

Há já uns bons anos íamos na estrada de Manteigas par Gouveia para almoçarmos o afamado arroz de feijão com entrecosto, quando vi um carro às cambalhotas na nossa direção.

Ciente de ser preferível receber o choque parado do que em colisão parei o carro e aguardei pelo que sucedesse.

Felizmente ele fez-nos uma tangente e foi parar na posição normal já fora da estrada. De lá de dentro saiu um rapariga aos gritos contra o condutor, um rapaz manifestamente imprudente na tentativa de lhe revelar a perícia ao volante.

Uma vez mais eu vira cumprido um dos ensinamentos propiciados pela experiência profissional: perante o que não se controla mais vale não nos precipitarmos e, aguardando a forma como evolui, logo encontrar a reação mais prudente.

Pode ter sido isso que sucedeu ao britânico Harry Shimmin quando, em 2022, sobreviveu  - com mais nove norte-americanos - a uma avalancha de neve, quando percorriam uma zona montanhosa do Quirguistão. Embora submerso pela neve e pela poeira, saiu incólume da inesperada experiência.

Ainda assim não deixa de fazer sentido a questão posta por muitos internautas confrontados com a filmagem do sucedido, quanto a ter ou não sido mais inteligente parar com a recolha do testemunho e pôr-se a correr dali para fora. Na mesma linha, aliás, dos que se questionaram porque, durante o tsunami do Natal de 2004, houvesse quem persistisse em filmar as águas, que os iriam tragar.

No seu carácter viral as imagens de Shimmin ilustram uma outra abordagem adicional: a de existir uma potencial diferença entre o lado aprazível das viagens pelas montanhas, tais quais são publicitadas pelas agências turísticas, e os riscos de vida que, de facto, comportam.

terça-feira, fevereiro 04, 2025

APONTAMENTOS CINÉFILOS: Os Grandes Criadores

 

Quando me acenam com propostas a respeito do processo criativo fico a salivar de interesse. O surgimento de algo de novo nas artes é matéria aliciante por corresponder ao interesse maior de aferir como, de algo existente, se pode construir o profundamente novo, quiçá mesmo revolucionário.

Foi com essa expetativa, que me pus a ver Os Grandes Criadores, filme rodado em 2020 e 2021 por Ramon de los Santos e Elisa Bogalheiro a pretexto dos 25 anos passados sobre a fundação da Companhia de Teatro do Chapitô. E ela viu-se razoavelmente satisfeita, quanto mais não seja por valorizar um coletivo algo subestimado entre nós por ser associado ao lado circense da mesma instituição e isso constituir motivo para serem vistos com injustificado preconceito. Razão desconhecida além-fronteiras onde ele goza de merecido reconhecimento.

Em causa está quem conseguiu organizar um espaço de experimentação de novas linguagens cénicas para compensar os meios escassos investindo-se na imaginação e na opção por uma maior expressão corporal,

Isso mesmo é evidenciado num conjunto de excertos sobre muitos dos espetáculos propostos nesse primeiro quartel de vida com justificado destaque para o que sugeriu o título ao documentário no qual houve a capacidade para por o público a gargalhar com um texto irresistivelmente blasfemo (uma delícia para um ateu como o sou!). Mas o mesmo nível de provocação também contido no Napoleão ou o Complexo de Édipo apresentado pouco antes da pandemia.

Um bom estímulo para quem puder ver o Rei Lear a partir de 1 de março.