quarta-feira, julho 04, 2018

(AV) A Roma de Caravaggio

Situada no centro de Roma a monumental Piazza Navona tem não só grandes igrejas mas também enormes esculturas a decorarem-lhe as fontes. Tanto basta para ser tida como emblema da arte barroca na capital italiana, apreciando-se em tais monumentos a exuberância, os efeitos dramáticos e a grandeza desse movimento artístico.
No final do século XVI o bairro adjacente a esta grande praça era o das elites, dos comerciantes e dos negócios obscuros.  Tratava-se de uma rua movimentada em plena mutação política, religiosa e artística.  E aí se agigantou Caravaggio com a inovadora técnica do claro-escuro.
Apesar de nascido em Milão foi em Roma, que ganhou merecida notoriedade com a concretização da componente mais significativa da sua obra. Segundo Michele Cuppone  ele conseguiu que a dimensão celeste descesse até ás ruas de Roma.
A vida, a obra e tudo quanto a inspirou decorreu no pequeno quadrilátero entre o Campo di Fiore, a Piazza Santi Apostoli, o Panteão  e a Piazza dei Popolo, que continuam a circunscrever o polo mais turístico da cidade. Mas, na viragem de Seiscentos para Setecentos replicava o Forum da época imperial, aí se cruzando peregrinos, embaixadores, turistas, artistas, universitários e colecionadores de arte. A Piazza Navona era incontornável, não só pela beleza, mas também como quotidiano local de passagem, onde era explicito o fosso entre as diversas classes sociais, contrastada entre os muito ricos - pouco numerosos - e os mendigos ou as prostitutas.
Tinha apenas 23 anos quando chegara a Roma em 1594, quando a Igreja contrapunha a Contra-Reforma à Reforma protestante. Os Papas andavam a incitar os aristocratas para que se aproximassem do povo, ao mesmo tempo que censuravam as obras literárias e condenavam à fogueira quem considerassem herege.
Nesse ambiente ultrarreligioso havia que dar provas de cumprimento dos rituais católicos, pelo que as classes mais abonadas rivalizavam entre si quanto à ostentação do seu fervor. A Igreja sentia urgência em retocar a contestada imagem e recuperar o prestígio perdido. O estilo barroco decorre desse clima cultural, que ganhou expressão na construção de novas igrejas e era ideal para lhe servir de ferramenta estética impondo os seus ideais.
Testemunhando tudo isso  Caravaggio reagiu com o pendor naturalista da sua obra, tão fiel quanto possível ao que via à sua volta. Com os primeiros quadros aí criados tornou-se famoso, sendo procurado por cardeais e aristocratas, depressa convertidos em clientes, até mesmo em mecenas.
Razão para ir ao encontro dos desejos dos que lhe encomendavam telas, ajustando-se aos temas sagrados. Podemos apreciar-lhe a primeira encomenda ao visitarmos a pequena igreja de S. Luigi dei Francesi e nos detivermos nos três quadros dedicados à vida de São Mateus. Nela confirma-se a propensão para «contaminar» o tema místico à vida popular da época, que tanto o fascinava. Por isso o quadro à esquerda revela um São Mateus a cobrar impostos na taberna. As personagens representadas eram modelados de acordo com os transeuntes, que Caravaggio encontrava nas ruas e convidava para se deixarem transpor para a tela. Eram cortesãos, prostitutas, estafetas ou, não raro, os próprios amigos. Era como se traduzisse nos quadros a vida diária que testemunhava nas deambulações pelo bairro.
Na Basílica San Agostino figura a Madonna dei Pellegrini, considerada uma das suas obras-primas, profundamente humana na reprodução do sagrado.
No dealbar do século XVIII Caravaggio tinha uma carteira de encomendas bem preenchida, sendo admirado e enaltecido pela forma como justapunha sombras e luz nos quadros, inspirando-se na boémia noturna a que se entregava com entusiasmo na companhia dos amigos, e em que se confrontava com frequentes situações violentas. Mas o estilo também lhe fora sugerido por quanto aprendera ao conhecer a obra dos mestres do século anterior, particularmente Rafael e Ticiano.
Em 1606 envolve-se numa rixa com um membro de uma família poderosa na Via di Pallacorda,  a quem matou. Vendo a vida em perigo foge da cidade, à qual não voltaria, pois morreu no regresso quando, agraciado, para ela voltava...

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