quinta-feira, junho 07, 2018

(DL) «Tróia ao Entardecer» de Antonio Sarabia


Agora que a Feira do Livro está a propiciar a possibilidade de reencontrar livros editados há já algum tempo e, entretanto, devolvidos aos armazéns das editoras por não terem encontrado quem os comprasse aquando da sua publicação, vale a pena enfatizar a oportunidade de descobrir «Tróia ao Entardecer» do mexicano Antonio Sarabia, até pelo facto de ter passado agora um ano sobre a sua morte nesta Lisboa, que ele escolhera como voluntário exílio dos seus anos crepusculares.
Para quem aprecia as histórias da mitologia grega e as epopeias homéricas, este é romance de apreço garantido. Passado em Troia quando o cerco já dura há nove anos e a liderança do incompetente Agamémnon está a ser posta em causa pelo intrépido Aquiles, conta como protagonistas dois irmãos -  Timalco e Lisandro - tão parecidos um com o outro, que amam a mesma mulher e por isso se odeiam a tal ponto, que só o homicídio poderá romper o equilíbrio de os começarmos por encontrar nos dois lados opostos da batalha. Trata-se, pois, de uma história repleta de batalhas, amores e desamores, narrada com a sólida prosa de um autor imerecidamente esquecido no amado país onde quis viver os dias derradeiros.
Aqui fica um extrato elucidativo, que pode abrir o apetite para o tardio reconhecimento:
Chamavam ao mar poros, «o caminho», ou pontos, «a passagem», e foi por esse caminho, por essa passagem, que chegaram até às costas de Tróia. Também lhe chamavam pélagos, «a imensidão», ainda que, ao aproximarem-se, as suas naves o cobrissem até onde a vista alcançava. Nunca antes se vira uma expedição tão numerosa. Cerca de cem mil homens de armas em mais de mil e duzentos navios vindos de todos os cantos da Hélade4. Soldados valentes capitaneados pelos chefes mais ilustres do seu tempo. Todos decididos a terminar rapidamente, a invadir e a saquear a cidade das amplas ruas, empenhados em devolver a esposa infiel a Menelau, seu amo e senhor, para que se fechassem juntos nos aposentos do seu palácio e resolvessem a sós, e de uma vez por todas, os seus problemas conjugais. E quando tudo isso fosse conseguido, voltar de imediato à pátria, esbanjar o saque que aquele ilustre adultério, e a fulminante vitória na guerra, lhes proporcionara. Mas a sua vontade fraquejou quando divisaram as sólidas muralhas de Tróia. Com razão se dizia que as edificara o próprio Posídon, o que faz tremer a terra. Todas, menos as que davam para o mar, eram obra de Éaco, antepassado do próprio Aquiles que agora com eles se encontrava aos seus pés. Sitiaram-se essas muralhas, e, embora houvessem sido erigidas por mãos humanas, nem por isso houve muito êxito face a elas, pois passados a vontade e os teimosos esforços dos seus atacantes.
Nem uns nem outros estavam habituados a semelhante encarniçamento. Aquela campanha de nove anos parecia-lhes a todos descabida e absurda. Nas suas guerras locais nem sequer se davam ao trabalho de perseguir o inimigo, bastava fazê-lo fugir para o considerar vencido. Se não se conseguia esse objetivo dentro de um tempo razoável, suspendiam-se as hostilidades e cada um voltava para a sua casa quando chegasse o Inverno. Em Tróia, pelo contrário, os sitiados permaneciam invictos atrás dos seus muros e não havia maneira de impedir que recebessem ajuda, avios e mantimentos pelas portas que não estavam vigiadas. Passada a primeira surpresa, e as escaramuças iniciais onde não houve vencedores nem vencidos, os teucros, como se chamavam antes os troianos devido ao nome de um dos heróis que fundaram a sua estirpe, tinham continuado com os seus afazeres de todos os dias, habituando-se à presença dos agressores como o caminhante se habitua a uma pedra no interior da sua sandália. De vez em quando saíam e entabulavam combates, mas a maior parte do tempo mantinham-se sossegados, ocupando-se com os seus próprios assuntos, enquanto os invasores, que não se resignavam a permanecer ociosos, depois de verrumar e afundar a pique a frota troiana atracada na foz do rio Escamandro, vingavam-se urdindo incursões à Trácia e à Frigia e saqueando as vilas e as aldeias das costas vizinhas.
Com o tempo, além dessas razias que lhes proporcionavam mulheres, riquezas e víveres, os aqueus ou dânaos, como também eram denominados por serem descendentes de Dânao, o inventor da agricultura, resolveram fazer honra a esse nome e destinar uma parte do seu numeroso contingente a semear a terra. Dedicaram-se especialmente ao cultivo da cevada e do trigo para fazer pão, assim como a plantar um vinhedo e à criação de gado suficiente, reses, borregos e cabras, que provessem às suas necessidades durante o longo cerco. Rapidamente, ao amparo das longas naves pintadas de negro, propagou-se sob as imponentes muralhas de pedra que resguardavam Ílion uma heterogénea comunidade de tendas e choças de madeira, protegidas por uma tosca paliçada, do mesmo modo que uma abarrotada aldeola prolifera à sombra de uma rica metrópole. Mas nada paliava o ódio dos seus habitantes, que, quando não lutavam, se olhavam de longe como dois vizinhos rancorosos.

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