Em 1832 Nathaniel Hawthorne publicou «O Véu Negro» («The Minister’s Black Veil»), que depois surgiu com frequência nas antologias com as suas histórias mais curtas.
No início temos o sacristão a tocar os sinos da igreja de Milford, na puritana Nova Inglaterra, para o serviço religioso. Mas logo estaca surpreso, num sentimento logo partilhado por todos quantos para ali acorrem: o reverendo Hooper surge-lhes com um véu preto semitransparente a obscurecer-lhe os olhos, só deixando a boca e o queixo à vista.
Enquanto se dirige ao púlpito todos especulam sobre o significado daquela singular forma de se apresentar, mas ele parece querer corresponder-lhes através da prédica sobre supostos «pecados secretos». De quem: dos paroquianos? Dele próprio? Ninguém arrisca juízo definitivo embora tudo aponte para a natureza pecaminosa inerente a todos as pessoas. Nesse mesmo dia, oficiando um funeral durante a tarde e um casamento noite adentro, Hooper não se desfaz da nova indumentária, mesmo que pareça assombrar a futura felicidade dos noivos com tão anódina postura.
A teimosia de Hooper quanto à intenção de nunca mais se livrar do véu resiste à própria noiva, Elisabeth, que tenta demovê-lo, primeiro com jovialidade, depois mais a sério, quando, derrotada, se vê forçada a romper o noivado. Muitos anos decorrem, já com todos os crentes do povoado a aceitarem placidamente a originalidade de pastor. “Por fim, a morte atingiu aquele homem que descansava num torpor mental e exaustão física, com pulso impercetível e uma respiração cada vez mais leve, exceto quando uma longa e irregular inspiração pareceu ser o prelúdio para o voo do seu espírito.” Respeitando-lhe a vontade, sepultam-no com o véu a cobrir-lhe o rosto.
Contemporâneo do autor, Edgar Allan Poe assinou uma crítica sobre o conto, constatando que cada leitor é desafiado a encontrar a explicação sobre o caso, afinal não tão absurdo quanto possa parecer, porquanto Hawthorne inspirara-se no caso real de um clérigo de York, no Maine, que matara acidentalmente um amigo, quando era jovem, e nunca mais se libertara de véu semelhante desde o funeral até à morte. Aqui, porém, Hooper nega o olhar dos conterrâneos para nele não verem a essência pecaminosa, intenção que se revela arrogante, algo a que um bom cristão deveria furtar-se.
Temos, pois, questões como a natureza escondida da culpa, a comunhão dos pecadores e a moralidade. O mesmo Poe especulou que Hooper poderia ter cometido adultério com a jovem, cuja urna é instado a acompanhar no início da história, dado ser esse o dia em que começa a envergar o véu. Hawthorne dá um sinal dessa possibilidade, quando os coveiros são tomados de breve visão, que o mostra de mãos dadas com o espírito da defunta.
Outras leituras referem o véu associado à obsessão puritana com o pecado, que fundamenta o medo obsessivo da comunidade com a salvação pessoal, havendo sempre o medo de não se fazer o bastante para merecer o acesso ao céu.
Na minha perspetiva a mais pertinente é a da rapidez com que os paroquianos normalizam a surpresa inicial, assimilando-a e comportando-se depois como se nada de extraordinário constituísse. É a velha fórmula pessoana do primeiro estranha-se, depois entranha-se. Ora, graças a essa tendência humana de cariz quase universal, quantos absurdos aceitamos na nossa quotidianidade sem os questionarmos? No caso dos não ateus, como levá-los a ajuizarem criticamente o facto de aceitarem a existência de uma qualquer natureza divina...
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