quinta-feira, junho 12, 2014

CINEMA: Catherine Deneuve continua sublime!

(a propósito do filme «Ela Está de Partida» de Emmanuelle Bercot)
Houve um tempo em que se ia ao cinema para ver um filme por causa do realizador (um Bergman, um Antonioni, um Godard) ou mesmo por causa de um ator ou atriz (um Bogart, uma Magnani).
Foi um passado, que já não volta mais, perdida a mística desse gesto cultural pela multiplicação de alternativas onde os filmes passaram a ser vistos: primeiro a televisão, depois os vídeos e os DVD’s e, para já, a internet.
As salas de cinema transformaram-se em locais de consumo de pipocas e de coca-cola e, uma a uma, as salas lisboetas onde se podia assistir a cinema com C grande foram desaparecendo. Primeiro o Quarteto, depois o Londres, mais recentemente o King e os coros fúnebres não se quedarão por aí. Sobrevive a Cinemateca enquanto a falta de cultura dos governos de direita ainda a tratar como filho enjeitado.
Tudo isto porque ainda está nos ecrãs lisboetas um filme que lembra esse passado: «Ela Está de Partida» vale a pena ser visto porque tem como protagonista uma Deneuve, que continua a ser sublime no seu desempenho.
Ao interpretar uma sexagenária que empreende uma viagem em busca de uma derradeira hipótese de felicidade depois de perder o amante e ver falido o seu restaurante, ela demonstra porque ainda justifica a razão para se imaginarem filmes destinados a ilustrar o seu talento. E a realizadora Emmanuelle Bercot rodeia-a de uma panóplia de personagens secundários, que são bem mais do que estereótipos e merecem ser apreciados pelo que e como o representam.
Hélas, que no meio de tanto lixo visual e da intoxicação dos noticiários com o futebol e a guerra declarada pelo (des) governo ao Tribunal Constitucional, o filme acabe por passar completamente despercebido a quem o poderia e deveria apreciar...

Sobre ele escreveu o crítico francês Pierre Murat:
Um cigarro? O que não se faria por um cigarro?
Num súbito impulso Bettie deixa a mãe, a sua casa das bonecas e o quase falido restaurante para agarrar no carro e pôr-se a andar não sabe para onde.
Não irá longe que o carro logo avaria, pondo-a a implorar boleia sem sucesso aos raros automobilistas. Aterrorizados por tal aparição eles fogem o mais depressa que fogem.
Bettie vai então até á aldeia vizinha, mas é domingo e as lojas nem sequer abertas estão já que não existem.
Ei-la obrigada a pedir um cigarro a um senhor tão idoso quanto tremelicante: com os dedos deformados ele bem tenta depositar o tabaco na mortalha: «Chega! Já a posso fumar!».
Mas o gentil e imperturbável cavalheiro não desiste de levar a tarefa até ao fim!
Sempre à procura do cigarro, Bettie prossegue o caminho: num bar encontra apreciadoras de cerveja, um tipo que imita o som do javali e um jovem em cuja cama acorda na manhã seguinte sem saber muito bem como tal sucedeu.
Pressionada por um pedido urgente da filha a quem já não vê há anos, toma conta do desconhecido neto durante umas horas, levando-o consigo a uma gala de Misses envelhecidas, que, como ela, tinham sido em tempos Miss Bretanha…
Estamos, pois, num road movie, dirigido pela rara e sempre provocadora Emmanuelle Bercot,que já assinara «La Puce»(sobre a perda de virgindade de uma rapariga) e «Clément» ( a paixão de uma mulher por um pré-adolescente).
Durante a primeira hora de «Ela Está de Partida» temos uma mistura surpreendente de ironia e de sensibilidade. Os personagens andam em permanente fuga, como se se desencontrassem tão facilmente quanto se tinham encontrado. E a montagem subtil e abrupta acentua essa sensação de lufa-lufa e de amarras sempre em rutura.
Tudo se complica quando Bettie fica com o neto. È que já vimos muitos miúdos hostis, carentes de atenção, depressa conquistados pela afeição dos avós. Ainda assim Emmanuelle Bercot tenta não derrapar nessa súbita transição da inquietação para a harmonia.
Numa casa onde os rumores do mundo à volta perdem importância ela acaba por reunir, sem qualquer lógica, os seus dispersos heróis para usufruírem de um momento de pausa. Esses fugitivos estacionam numa breve pausa, sem se pacificarem, mas também sem guerrearem entre si.
Então, numa derradeira tarde, a mãe de Bettie entoa uma cantilena do passado, que costumava ser interpretada pelas prostitutas do «Prazer» de Max Ophuls. A realizadora filma os olhares que se entrecruzam, os amores que se esboçam. Subitamente, nessa fugaz quietude, como que arrancada do tempo, até o improvável se torna possível.
E há a sempre brilhante Catherine Deneuve, que chora de desgosto ao volante do carro. Que ri desbragadamente ouvindo o seu jovem sedutor seduzi-la. Que, entre risos e lágrimas, vai bebendo uma cerveja, enquanto conta ao guarda-noturno do armazém de móveis o lamentável fim do seu marido: asfixiado por uma asa de frango e socorrido pelo médico de que ela era amante e cuja mulher era por seu lado a amante do morto.



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