Gosto muito de uma frase italiana, que suscita múltiplas possibilidades à nossa imaginação: si non e vero e bene trovato!
Ela ajusta-se na perfeição ao filme «Written by Mrs. Bach» de Alex McCall e Eirini Vachlioti, que deram expressão cinematográfica às teses de um estudioso da obra do grande compositor alemão do século XVIII. Segundo Martin Jarvis é muito provável que algumas das mais conhecidas peças instrumentais a ele atribuídas, tenham sido afinal compostas pela sua segunda esposa, Anna Magdalena. Dever-se-lhe-iam, por exemplo, os célebres solos para violoncelos, que são das obras mais conhecidas e admiradas atribuídas a Bach.
A História da Música assinala com alguma surpresa o facto de serem tão numerosas as obras conhecidas de Bach. A prodigalidade da sua inspiração surpreende, sobretudo, pela beleza e complexidade do que dela resultou. Por outro lado, e muito surpreendentemente, quase não se conhecem mulheres compositoras antes do século XX. No entanto, sabe-se que elas tinham formação musical, sendo Anna Magdalena uma excelente cantora, para além de copista das obras do marido. O que a impediria, pois, de se deixar imbuir pelo ambiente criativo em que se vivia e também ela dar azo ao talento, que lhe era reconhecido?
Há também a questão do afã com que o primogénito do compositor, Carl Philip Emmanuel Bach, filho da primeira mulher dele, se apressou a queimar ou destruir toda a documentação pessoal do pai, cuidando ele próprio de lhe traçar a biografia de acordo com a sua própria versão. Lamenta-se, por isso mesmo, que se conheça bem menos sobre a vida e obra de Johann Sebastian do que de muitos outros compositores seus contemporâneos e até mesmo anteriores. Pode-se supor que o enteado de Anna Magdalena não estaria propriamente disposto a contribuir para a celebridade da madrasta em detrimento da genialidade do pai, que procurava promover.
O que o professor Jarvis defende é a existência de discrepâncias de estilo, e sobretudo, diferenças grafológicas evidentes nas partituras a que teve acesso, indicando a maioria que seriam obras de Johann Sebastian, mas algumas outras da esposa.
Sabendo-se que existem outras peças, igualmente tidas como de Bach, afinal compostas pelos assistentes, não custa crer que ele tenha assumido a liderança de uma empresa familiar com Anna Magdalena e os colaboradores a criarem novas peças sob a sua supervisão, todas elas por si assinadas.
Os puristas, porém, olham para Jarvis como se fosse o diabo, apesar de, na realidade se tratar de um australiano sincero e encantador. Convicto das suas razões procurou aprofundá-las com a consulta direta de outras pautas, mas a instituição alemã que é delas fiel depositária, recusou-lhe o acesso. Ao mesmo tempo alguns dos seus principais colaboradores lançaram uma campanha feroz a desacreditar Jarvis, apresentando-o como uma espécie de lunático sem outro objetivo que não o da sua própria autopromoção. O que justifica a desconfiança: se os propósitos de Jarvis são tão absurdos porquê negarem-lhe a possibilidade de, com uma especialista em grafias, analisar mais detalhadamente o que resta das antigas pautas?
As dúvidas são pertinentes, a tese afigura-se-nos perfeitamente credível e, como diz a tal frase italiana, se não for verdadeira não deixa de ser bastante estimulante. Sobretudo por outra linha de pensamento que abre: tendo em conta a diferença entre a forma como hoje encaramos a condição do autor e a de séculos idos até que ponto não existem fundamentos para questionar muitas das premissas em que assenta a História da Música tal qual a conhecemos?
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