Vemos, ouvimos, lemos e experimentamos. Tanto quanto possível pensamos pela nossa própria cabeça...
segunda-feira, janeiro 31, 2011
Filme: NAS NUVENS de Jason Reitman
Quando o pai de Jason Reitman realizava comédias românticas há mais de vinte anos («Dave», «Caça Fantasmas», etc) elas seguiam um guião rico em peripécias amorosas, mas sempre seguindo a regra final de «boy meets girl».
Chegamos a esta segunda década do século XXI e tudo mudou. Até para esse universo de relacionamentos entre homens e mulheres. Quando a crise económica traz como pano de fundo uma ampliação do fenómeno do desemprego, sobretudo entre os mais velhos, os menos qualificados e, sobretudo, as mulheres separadas ou divorciadas.
Clooney faz de Ryan Bingham, um personagem que se cola a muitas das características atribuíveis a ele enquanto pessoa: solteiro inveterado, com uma verdadeira fobia pela possibilidade de vir a ser aprisionado numa casa, numa família.
Voando quase onze meses por ano, ele anda de empresa em empresa de todos os estados norte-americanos a anunciar o despedimento dos que vão sendo atirados borda fora pelos seus empregadores. Sem estados de alma, que pudesse fazê-lo sentir-se penalizado pelo lado (i)moral da sua actividade.
Duas mulheres irão, porém, absorver os seus dias: uma é Natalie, uma recém-licenciada, orgulhosa das suas boas notas no curso e das ideias inovadoras a aplicar naquela indústria. Por exemplo o despedimento em vídeo-conferência a uma confortável distância do interlocutor.

Natalie também irá passar por uma completa inversão do seu percurso de vida previsível ao confrontar-se com o suicídio de uma mulher a quem anunciara o despedimento.
No final, Ryan volta à sua interminável sequela de viagens entre a Costa Leste e a Costa Ocidental, encarando o seu vazio existencial com menos comprazimento do que sentia, quando o encontramos no início do filme.
Está, pois, longe de se verificar aqui um happy end. Pelo contrário até num suposto filme de entretenimento, Hollywood não se exime de mostrar o lado mais obsceno do capitalismo selvagem. Aquele em que as pessoas são descartáveis em nome da sacrossanta instituição do lucro de uns poucos privilegiados.
domingo, janeiro 30, 2011
Livro: A VIAGEM DOS INOCENTES de Mark Twain (8)
No livro da viagem de Mark Twain pelo Mediterrâneo durante o ano de 1867 chegamos à parte em que os passageiros do paquete aportam à Grécia para visitarem Atenas. Mas, como de costume na época, as autoridades querem acautelar os seus cidadãos de possíveis epidemias e impõem uma quarentena. Que o capitão não aceita, preferindo avançar no dia seguinte para Constantinopla.
Restará a Mark Twain e a três amigos uma excursão nocturna à Acrópole, fintando a vigilância das autoridades e escapando á ameaça de cães e façanhudos gregos dispostos a salvaguardar as suas vinhas dos assaltos daqueles americanos entusiasmados com a possibilidade de saciarem a fome e a sede com recurso à chinchada.
Desconhecemos se a realidade terá sido assim ou se Twain se passeou placidamente pela Plaka e pela Acrópole sem quaisquer constrangimentos . Que por liberdade literária tenha optado por uma narrativa ficcionada resulta um capítulo divertido em que descortinamos algo da irreverência de Tom Sawyer ou de Huckleberry Finn.
Filme: AVATAR de James Cameron
Aquando da estreia do filme nas salas de cinema, ele passou-nos ao lado.
Desconfiamos sempre de grandes êxitos, que se anunciam com trombetas e nos querem à viva força atrair. Até porque se revelam quase sempre produtos industriais bem concebidos, mas vazios de ideias.
Mas pode-se dizer que «Avatar« constitui uma excepção cumpridora da regra. Sobretudo porque, visto num dos canais telecine, apenas sugere o efeito tridimensional então exibido nas salas de cinema, e que terão potenciado o seu sedutor aspecto visual.
Deu, assim, para considerar que teria valido a pena seguir a turba e vislumbrado essa anunciada tendência de um cinema diferente, mais tecnológico, dotado de meios para credibilizar os sonhos psicadélicos mais intensos.
Timothy Leary, se fosse vivo, não deixaria de se entusiasmar com a capacidade do cinema vir a garantir os mesmos efeitos visuais dos seus delírios com LSD.
Quanto à história do filme em si, segue os cânones de tanto cinema de Hollywood: há bons e maus e aqueles acabam por vencer os terríveis inimigos.
O singular neste argumento é o tipo de leituras colaterais, que permite ao estar ainda tão presente a invasão do Iraque ou a intervenção no Afeganistão.
E a espiritualidade do povo Na’vi pode evocar a crença islâmica dos ocupados pelas tropas comandadas por Donald Rumsfeld.
A exemplo do sucedido naqueles teatros de guerra bem concretos, os humanos têm um poderio militar incomparável em relação aos autóctones e chefes militares tão cabeçudos como Tommy Franks.
Mas os desprotegidos habitantes do planeta ocupado acabam por encontrar forma de expulsarem o invasor, mesmo que graças à ajuda de um ex-inimigo, esse Jake Scully, que se torna num deles, quando está ligado à máquina da drª Grace Augustine…
No final poderíamos lançar vivas pela vitória daquele arremedo de revolução bolchebique e pela expulsão dos interesses imperialistas.
Mas será que os milhões de espectadores norte-americanos terão pressentido sequer, o quanto ali se espelhava o pior da sua ideologia dominante?
sábado, janeiro 29, 2011
Livro: O TERCEIRO REICH de Roberto Bolaño
Bem podem os críticos literários e os marketeers das editoras enunciar maravilhas, que a escrita de Roberto Bolaño em nada me impressionou à primeira tentativa de o ler.
Pode-me, porventura, sensibilizar o seu esforço pessoal numa escrita obsessiva, passível de garantir os direitos de autor aos filhos menores, que sabia ir deixar órfãos em breve. Mas «O Terceiro Reich» é um romance banal em forma de diário, assumido por um narrador alemão, Udo Berger, cuja ocupação principal é o desenvolvimento de jogos de estratégia.
É para aprofundar as virtualidades de um deles, dedicado às batalhas militares do Terceiro Reich, que ele vem de férias para a Costa Brava catalã, alojando-se coma namorada Ingeborg no mesmo hotel aonde costumava acompanhar os pais nos verões da sua adolescência.
Desse passado recorda a paixão pela bela Frau Else, a mulher do agora quase moribundo dono do estabelecimento.
A forma como o equilíbrio inicial irá ser perturbado não terá nada a ver com esse potencial triângulo amoroso entre ele, a frívola Ingeborg e a carente Else.
O problema, diria mesmo o inferno, serão os outros. A começar por outro alemão, Charly, o instável praticante de surf e de muitas bebidas, que tanto parece afeiçoado à namorada Hanna, como a sujeita a odiosas agressões físicas.
Antes de se afogar num acto de possível suicídio, Charly ainda sujeita Udo ao convívio com dois proletários sem eira nem beira, o Lobo e o Cordeiro, que só pensam na melhor forma de se deitarem com as alemãs. Sem o conseguirem, claro, que elas estão longe de se mostrarem para aí viradas.
Ou sobretudo com o Queimado, um jovem disforme responsável pelo negócio de aluguer das gaivotas da praia, com o rosto marcado pelas consequências de um possível incêndio, e que se torna no adversário de Udo no jogo entre os exércitos nazis e as forças aliadas.
Será um desafio em que depressa parece estar algo mais em causa do que a movimentação de pedras e de cartas no tabuleiro. Pode estar a própria vida de Udo, já que o Queimado será um obsessivo antinazi que, se ganhar, quererá sujeitar o derrotado a um improvisado tribunal de Nuremberga em areias catalãs. Contando para isso, suspeita Udo, com as orientações do moribundo esposo de Else, que agiria por mero ciúme.
Como campeão alemão da modalidade, Udo cedo ganha avanço. A Wehrmacht avança decididamente pelos países orientais penetrando seriamente na União Soviética, depois de já ter ocupado a França.
Indo mais longe do que os próprios acontecimentos históricos, Udo faz avançar as suas tropas para solo inglês e ibérico, em convergência com o Afrika Korps no norte de África. Mas, em 1942, já os exércitos alemães estagnam às portas de Leninegrado e de Estalinegrado. Para começarem a recuar aceleradamente até à derrota final. Mas, por essa altura já o corpo de Charly dera à costa e fora reenviado para a Alemanha, aonde igualmente estavam Hanna e Ingeborg.
Na sua paranóia, Udo rejeita os conselhos contínuos de Frau Else ou do seu amigo Conrad para regressar a casa, como se tivesse de viver até ao fim o desiderato do jogo.
Só então, e sem ocorrer o seu assassinato pelo Queimado conforme temera, é que ele regressa. Para arranjar novo emprego administrativo numa fábrica e encontrar um recuperado equilíbrio pessoal donde surge erradicado o interesse por aquele estranho jogo.
terça-feira, janeiro 25, 2011
Filme: QUE SÍTIO MARAVILHOSO! de Eyal Halfon (2005)
A história passa-se em Israel, mas podia passar-se aqui em Portugal ou em qualquer outro país do Ocidente. Porque tráfico de pessoas é assunto na ordem do dia nestes tempos de migrações globais.
Ainda assim este filme de Eyal Halfon dá uma visão muito diferente da que nos habituámos a ter do país de Benjamin Netanyahu. Porque em vez da guerra declarada entre judeus e palestinianos, encontramos um espaço ocupado por emigrantes tailandeses no cultivo dos campos, filipinos no apoio à terceira idade, colombianos, romenos ou brasileiros na construção civil ou ucranianos na exploração da prostituição e do jogo.
Outros personagens vêm igualmente complementar o universo descrito pelo realizador: o bulímico infeliz, mais próximo dos seus empregados tailandeses do que da mulher que o engana com o patrão. Ou o velho militar inconformado com a sua degradação física e decidido a pôr-lhe um ponto final de livre vontade.
Naquele que será considerado um lugar maravilhoso por uma princesa tailandesa em viagem turística pela região, as personagens encontram saídas contraditórias para os seus impasses: o velho Aloni consegue suicidar-se não sem antes livrar o criado filipino do chefe mafioso, que o roubara de todas as suas poupanças, Jana consegue recuperar o passaporte e assim regressar à Ucrânia natal ao encontro da sua filha, Franco é aprisionado quando o seu bando é capturado numa acção dos seus antigos colegas. E até Zeltser decide pedir ajuda na organização dos Bulímicos Anónimos.
Há, pois, um final feliz, mesmo que um dos personagens mais presentes na tela acabe preso. Mas o espectador sentirá essa punição como manifestação de uma forma de justiça por condenar quem, apesar de alguns escrúpulos, nunca ter conseguido encontrar forças para vencer as suas mais nefastas pulsões...
domingo, janeiro 23, 2011
Filme: MARIA AM WASSER de Thomas Wendrich (2006)
Uma das vantagens de se frequentar uma outra cinematografia e´que tudo muda em relação aos estereótipos a que estamos habituados, quando vemos demasiados filmes norte-americanos, ingleses, franceses ou mesmo portugueses. Existe uma outro ritmo narrativo, uma forma distinta de fotografar a paisagem, ou seja a sensação de se frequentar outro universo idiossincrático.
«Maria Am Wasser», que mereceu um título francês mais elucidativo («O Afogado, que estava bem vivo») aborda precisamente os fantasmas de uma Alemanha (Oriental), que já não existe, aonde se empolava a importância da paz mundial, da cultura para os jovens e as comemorações por tudo e por nada, mas também aonde agentes da polícia política (Stasi) espreitavam de cada esquina.
A chegada de Marcus à pequena aldeia de Neusorge depois do seu suposto afogamento vinte anos atrás, irá constituir uma ameaça para todos quantos pretendiam tapar os idos pecados privados sob a capa de supostas virtudes públicas.
Marcus vem procurar a razão para nunca ter sido amado por essa Maria, que alimentava as paixões de três pretendentes sem verdadeiramente se dar a nenhum. Mulher egoísta e fria, essa Maria nunca terá sido, nem nunca será a mãe de que Marcus careceria. Mas, em compensação, ele consegue pôr novamente a funcionar o órgão da igreja aonde pode ser tocada a maravilhosa música de Smetana e sair dali com o amor de uma jovem mulher, que fora aí resgatar o seu filho perdido. Alena será, pois, para Marcus, a projecção da mãe, que nunca tivera e que agora conquistava enquanto companheira para o seu futuro.
Acresce que, para além de alguma incomodidade com alguns meandros do argumento, aparentemente incompreensíveis para a nossa cultura, o espectador terá de se render sem reservas à fotografia cuidada das margens do rio Elba.
Filme: NEM POR NEM CONTRA de Cedric Klapisch
O problema da maioria dos filmes norte-americanos é o maniqueísmo de que se revestem quase sempre, com os personagens reduzidos a estereótipos e o final previsível com os que estão desviados da norma convencional a pagarem os custos dessa diferença.
Depois da «Residência Espanhola», que tanta fama lhe deu, Klapish confirma o seu estatuto de realizador de filmes de entretenimento inteligente, aonde será sempre possível descortinar algo mais do que a mera história de um assalto, que corre mal para todos quantos nele colaboram, excepto para uma mulher frágil, que atravessou todas as fases evolutivas até descortinar em si uma insuspeitada força interior...
quarta-feira, janeiro 19, 2011
Filme: FANTASIA LUSITANA de João Canijo
Uma das mais sinistras variações da arte de ser português reside numa certa mistificação da personalidade desse execrável pulha, que foi António de Oliveira Salazar.
Apregoado há uns anos numa produção televisiva como a personalidade histórica nacional mais admirada, correm sobre ele mitos sobre a sua suposta honestidade, o seu sentido de missão na defesa da «pátria» ou a capacidade para isentar este cantinho à beira-mar plantado dos efeitos mais terríveis da guerra, que alastrava em toda a Europa na década de 40.
Nenhuma evidência histórica suporta esses mitos, mas eles ainda perduram como contraponto a uma democracia burguesa ineficiente, de que vozes atarantadas sublinham os malefícios sem dela evocar os óbvios benefícios.
O filme de João Canijo traz de novo uma tese interessante, evidenciada pelas actualidades cinematográficas com que o regime pretendia disseminar a sua propaganda: existia um país miserável, aonde as pessoas andavam esfomeadas, esfarrapadas e descalças, omitido dessas imagens, que exibiam um paraíso de todos admirado, aonde reinava a ordem, a disciplina e a humildade.
A chegada em massa dos refugiados da ameaça nazi vem trazer uma possibilidade de modernização das consciências, mas, infelizmente, o regime mostra-se hábil e segregar convenientemente esses estrangeiros por aqui em trânsito para paragens menos ameaçadoras. Os testemunhos de três desses circunstanciais visitantes, lidos em voz off, denunciam a tristeza reinante apesar da aparente festa organizada pelo regime em prol do chamado Mundo Português.
Estava-se, então, no apogeu do Estado Novo, quando todas as oposições (anarquista, comunista, republicana) pareciam destroçadas e Salazar iludia a mediocridade do regime com a farsa de um suposto império, que não demoraria vinte anos a ser ameaçado pelos ventos da História.
Cultivando essa fantasia de mãos dadas com uma Igreja, que tanto contribuía para fomentar o conformismo perante as gritantes injustiças da realidade, o fascismo luso só permanecia incontestado à conta do analfabetismo de 70% dos seus cidadãos e do interesse geoestratégico das potências do Eixo e aliadas em manterem em banho maria uma área geográfica, que as poupasse a maiores esforços de logística militar.
Olhando criticamente este filme de João Canijo percebemos melhor a tenebrosa herança deixada por um ditador, que ainda hoje corrói a identidade do povo que somos.
quarta-feira, janeiro 12, 2011
Filme: SANGUE E OURO de Jafar Panahi
Em 2003, quando este filme foi produzido e distribuído pelos mais prestigiados festivais de cinema europeus, acreditava-se que o Irão estava à beira de inflectir o rumo definido pela revolução dos ayattollahs. Não se vislumbrava, ainda, o passo atrás dado pela eleição de Ahmenidejad.
Oito anos depois os criadores deste filme estão ostracizados da realidade do seu país: o realizador, Jafar Panahi está preso por delito de opinião, e o argumentista, Abbas Kiarostami exilou-se.
Hussein, o analfabeto distribuidor de pizzas nas horas nocturnas e ladrão de esticão durante o dia tem uma percepção muito lúcida sobre essa injusta distribuição da riqueza. Ele bem gostaria de casar com a irmã do comparsa, Ali, e ter uma vida de algum conforto, mas os seus rendimentos são exíguos. Pior que isso a sua pobreza sujeita-o a desprezos e humilhações, que lhe revoltam o âmago.
Se decide avançar para um golpe audaz: o assalto a uma ourivesaria apenas acessível aos ricos constitui a oportunidade para enriquecer e para se fazer respeitar por quem o destratou.
Infelizmente para ele tudo corre mal e, antes que chegue a polícia para o prender, Hussein prefere meter uma bala na cabeça.
Mas não é só o carácter fascista do regime islâmico, que surge aqui retratado. Tal qual acontecia nesse filme anterior, ainda mais revelador de tal cenário («O Círculo») a triste condição da mulher iraniana é aqui evidenciada através da forma como os homens as comentam, as destratam, as sujeitam a esconderem-se nos seus véus.
Se viver nas democracias burguesas ocidentais nos dá ensejo de presenciar revoltantes injustiças, num regime fundamentalista islâmico como o do Irão, elas estão ainda mais omnipresentes à nossa volta...
segunda-feira, janeiro 10, 2011
Filme: PARIS JE T’AIME
Paris e Nova Iorque já tiveram o seu título, Xangai vem aí a caminho.
Está em curso um projecto cinematográfico, que passa por convidar diversos cineastas a realizarem pequenos episódios situados em tais cidades, delas dando um painel muito diversificado de retratos, pressupondo-se um espelho fiel da sua identidade no mosaico assim resultante.
Porque são histórias muito curtas não chegam a empolgar, mas, por outro lado, na sua multiplicidade suscitam interessada curiosidade.
Passemos então em revista os episódios deste filme em concreto. O primeiro é assinado por Bruno Podalydés e passa-se em Montmartre. Um solitário desesperado por não encontrar companheira que o queira vê a sua sorte grande cair-lhe mesmo à beira do seu carro acabado de estacionar. É uma desconhecida a contas com um desmaio momentâneo e pronta a interessar-se pelo seu salvador.
Situação semelhante acontece também a um jovem, que socorre uma rapariga árabe orgulhosa do véu com que tapa os cabelos, mas que se magoa nas mãos ao tropeçar numa pedra. Esperando-a à saída da mesquita vê o avô dela a convidá-lo para que os acompanhe…
Alguns episódios têm a ver com conversas de engate como ocorre no de Gus Van Sant: um rapaz está obviamente interessado noutro, que conhece num atelier artístico. mas este nada percebe do que ele lhe diz, já que não fala francês. Mas ao dizerem-lhe do que se trata ei-lo a trotar pelas ruas em busca desse possível amor.
Walter Salles é o autor de um dos episódios aonde se trata da emigração: uma jovem latino-americana deixa o seu bébé num infantário para chegar a tempo ao emprego. Que é o de cuidar dos bebés alheios.
Já o episódio de Christopher Doyle sobre um vendedor de produtos de cosmética é tão surreal, que acaba por se revelar um dos menos interessantes.
O japonês Nobushiro Suwa escolhe a via mística com Juliette Binoche no papel de uma mãe a contas com o sofrimento da perda de um filho. Seguindo a sua voz pelas noctívagas ruas desertas da Place de la Victoire ela pacifica-se ao ver o miúdo levado para o Além por um cowboy de sorriso reconfortante (Willem Dafoe).
Continuando em opções algo mágicas, Sylvain Chomet põe um miúdo a explicar como os pais se conheceram na prisão: e ambos são dois mimos, que convivem de forma nem sempre muito facilitada com os demais.
Alfonso Cuaron leva-nos para o equívoco: julgamos que Nick Nolte vai conhecer o caprichoso genro, mas afinal a filha apresenta-o ao seu bebé, que ele ficará a guardar enquanto ela sai com uma amiga.
Olivier Assayas evoca o que se passou realmente com Kristin Dunst quando veio rodar o filme de Sofia Coppola sobre Maria Antonieta a Paris. A droga no caminho das estrelas de Hollywood…
Outro tipo de delinquência é a abordada por Oliver Schmitz, que ilustra os últimos momentos da vida de um pobre nigeriano, que apunhalado para ser espoliado da sua viola, tem a oportunidade de contar com a rapariga a quem ama a dele cuidar no seu primeiro dia como paramédica...
O episódio de Richard La Gravenese junta dois actores maravilhosos, Bo Hoskins e Fanny Ardant, enquanto casal maduro disposto a apimentar a sua relação. Nem que para tal promovam um encontro num bar com salas reservadas para o strip tease.
Na vertente fantástica temos a relação amorosa de uma vampira por um jovem a quem salva mordendo-lhe o pescoço (realização de Vincenzo Natali) e a forma como o fantasma de Oscar Wilde permite a um desajeitado noivo recuperar a companheira, por momentos decidida a inflectir caminho por não ser motivada para o lado divertido da vida. Este episódio era assinado por Wes Craven.
Aproximando-nos do final temos outro equívoco: um jovem cego julga que a namorada está a romper com ele pelo telefone e, afinal, ela apenas está a pedir-lhe a opinião para a forma como irá desempenhar mais um papel teatral. Ela é Natalie Portman e a realização (talvez a mais imaginativa de todas as criadas no filme) de Tom Tykwer.
Depardieu interpreta e realiza uma verdadeira homenagem a John Cassavets recorrendo dois dos seus mais emblemáticos actores: Gena Rowlands e Ben Gazzara. E a história é a de um divórcio anunciado para que ele possa desposar a jovem namorada, já com uma gravidez em curso.
E a despedida com uma matrona de Denver intimidada por desvendar Paris sem a cumplicidade de quem possa amar, mas descobrindo afinal que apaixonando-se por Paris, também por ela se sente correspondida.
Seguindo esta descrição constatamos a existência de um fio condutor, que dá consistência a todo o conjunto...
domingo, janeiro 09, 2011
Livro: A VIAGEM DOS INOCENTES de Mark Twain (7)
No Verão passado estivemos na exposição anual da Royal Academy of Arts.
Numa dezena de salas acumulavam-se centenas de quadros, de gravuras, de litografias, a par de algumas esculturas colocadas à venda dos interessados, que se acotovelavam a apreciá-las, sobretudo às que ainda não possuíam as bolinhas identificadoras de estarem já vendidas.
Recordei tal vivência ao ler mais algumas páginas de Mark Twain na sua viagem pelas galerias do Vaticano: são tantas as obras expostas, que não se chega a admirar uma única com a disponibilidade devida.
Ficam em questão algumas perguntas: para que serve afinal a arte? Em que é que a sua exposição nos pode envolver, transformar?
sábado, janeiro 08, 2011
Documentário: LUTHER CONTRE LE PAPE de Jean-François Delassus (2004)
Personalidade determinante numa época de passagem da Idade Média para a Renascença, Lutero irá insurgir-se contra o comércio de indulgências com que o Vaticano pretendia sangrar os pobres e os burgueses de toda a Europa para arranjar o dinheiro necessário à criação da Catedral de S. Pedro.
Contestando a relação de intermediários privilegiados entre Deus e os homens por parte dos membros do clero, Lutero utiliza a recém-inventada imprensa para divulgar as suas ideias. Que incomodam Carlos V, enquanto imperador da principal potência de então (a Espanha) e um Papa, que vê o cisma beliscar seriamente o suposta infalibilidade do seu poder espiritual.
Mas Lutero acaba por também estar ligado à criação do capitalismo moderno e, na vertente mais mística das suas ideias, ao próprio nazismo.
No fundo a religião e a política nunca se dissociam e até dão as mãos quando se trata de fundamentar a exploração do homem pelo homem…
Cinema: ANJOS E IDIOTAS de Bill Plympton (2008)
Há passos que não se devem dar quando a perna é muito curta. Eis a constatação a tecer a respeito desta longa-metragem de Bill Plympton, cujas curtas-metragens são, amiúde, interessantes.
Repetindo-se aqui o estilo habitual dos seus desenhos, temos um personagem de péssima conduta, que é violento sempre que pode, sejam suas vítimas o condutor do carro, que lhe tenha roubado o lugar de estacionamento, a mulher do dono do bar aonde passa horas ou um outro involuntário parceiro de copos cuja fragilidade seja por demais evidente.
Estranho é começarem a crescer-lhe asas nas costas. Que ele procura cortar, ou esconder até tal lhe ser impossível.
Mas nem esses atributos de eventual santidade lhe melhoram o comportamento, sucedendo-se novas agressões e provocações a quem passa no seu horizonte. Até que se apaixona pela mulher do barman e acaba por este assassinado.
Mas nem os novos donos das asas tomam melhores atitudes: há um médico, que só vê em tais atributos a riqueza mediática por eles passíveis de garantir e o próprio dono do bar recorre à capacidade de voar para fazer explodir todos os seus concorrentes.
Moral da história: a religião não capacita as pessoas a melhorarem as suas virtudes e a restringirem o que lhes vai de negativo no íntimo. Solução a sério só o Amor com o ressuscitado protagonista inicial a acordar, feliz, com a ex-mulher do barman.
O problema do filme não é, pois, a temática nem a sua visualidade, mas o quanto se arrasta para chegar à dimensão da longa-metragem: enfadando com as repetitivas variantes surrealistas, que nada lhe acrescentam…
Livro: A VIAGEM DOS INOCENTES de Mark Twain (6)
Em Itália Mark Twain insurge-se com a frase «Retalhados para o Festim romano», que ouve centenas de vezes a propósito dos gladiadores do Coliseu. E ver atribuído a Miguel Ângelo todas as pinturas e esculturas, todos os edifícios e até as maravilhas naturais, que integram o discurso dos guias turísticos, leva-o a, de cumplicidade com os companheiros da sua viagem dos inocentes a fingir indiferença sobre tudo e a fazer exasperantes perguntas estúpidas. Do género: aquelas termas romanas ou aquele obelisco egípcio também são da autoria de Miguel Ângelo?
quarta-feira, janeiro 05, 2011
Cinema: HOMENS QUE MATAM CABRAS SÓ COM O OLHAR de Grant Heslov
A guerra ao Iraque lançada por George W. Bush tenderá a tornar-se cada vez mais abordada pelo cinema contemporâneo à medida que a História se for distanciando dos acontecimentos, que lhe estiveram na origem.
Se as primeiras tentativas embateram fragorosamente na incapacidade do público norte-americano em aceitar a tenebrosa maquinação política em que se deixara envolver e as suas consequências na destruição anímica de toda uma geração de jovens ali comprometidos - recorde-se, por exemplo, «O Vale de Elah» de Paul Haggis em 2007 - as mais recentes começam a ter outra receptividade.
No caso deste filme de Grant Heslov a precaução com que se trabalha o tema passa por duas constatações imediatas: a primeira é a de se tratar de uma produção aparentemente britânica (da BBC Films), embora na realidade levada por diante graças ao empenhamento de George Clooney. E depois, porque se abordam os aspectos mais óbvios do militarismo norte-americano (uma leitura desviada da realidade, a tortura a prisioneiros, a liberdade de acção conferida aos mercenários no terreno) sob a capa de uma comédia, que tem momentos particularmente bem conseguidos na capacidade de suscitar o riso.
O narrador é Bob Wilton, jovem jornalista do Michigan, interpretado por Ewan McGregor, uma vez mais fadado para papéis de ingénuo idealista capaz de se espantar com tudo e de lhe sofrer as consequências (às vezes bem dolorosas).
Decidido a provar à ex-mulher as qualidades de coragem, que não tem, decide ir como free lancer para o Koweit, na expectativa de conseguir entrar no vizinho Iraque. A sorte - ou será uma qualquer manifestação de transcendência universal? - põe-no em contacto com Lyn Cassidy (George Clooney), que lhe fora descrito em reportagem anterior como uma espécie de espião psíquico.
À medida que o vai acompanhando no interior do país em guerra fica a conhecer a singular história da unidade militar de Fort Bragg a que ele pertencera: o exército da Nova Terra organizado por um veterano do Vietname, Bill Django (Jeff Bridges), que convencera o Pentágono das vantagens de formar um conjunto de militares especiais capazes de contrabalançarem os avanços militares soviéticos no terreno do paranormal, mesmo que à custa da utilização intensiva do LSD.

Imagem contundente essa em que as barreiras da unidade norte-americana são derrubadas e quem estava a ser violentado recupera a ansiada liberdade. A começar pelos proscritos Bill e Lyn, que desaparecem nos céus no helicóptero obtido na devastada base.
E se Bob comprova a dificuldade com que a verdade pode ser transmitida aos leitores ou aos espectadores das cadeias de televisão - apenas informados dos aspectos mais secundários e anedóticos de uma realidade monstruosa - ele dá a resposta necessária na derradeira imagem do filme: aquela em que se projecta contra a parede aparentemente intransponível à sua frente e a consegue atravessar.
Não podia existir melhor metáfora para demonstrar a importância de investir com determinação contra os muros, que nos coarctam, mesmo quando eles parecem ter uma solidez a toda a prova.
E assim se demonstra como um suposto entretenimento consegue ser mais eficaz na exposição do seu tema do que a maioria dos chamados filmes militantes...
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