sábado, agosto 03, 2019

(AV) Um Museu devolvido à sua missão fundamental


Como visitante regular do Museu Nacional de Arte Antiga sempre me incomodou o comportamento de António Filipe Pimentel, seu anterior diretor, preocupado que o vi em criar em seu torno um culto da imagem suscetível de dar maior efeito à sua permanente contestação ao governo de António Costa. Quando aceitou abrilhantar iniciativas do CDS só confirmou um dos objetivos prioritários da sua ação à frente da instituição, já que dele tivéramos comprometido silêncio durante a época de cortes de Passos Coelho.
Nesse sentido a entrevista concedida por Joaquim Caetano a Isabel Salema e a Lucinda Canelas (hoje no «Público») sossega-me o incómodo e confirma que, depois de muito fogo de vista, existe o retorno ao essencial. Por exemplo ao urgente restauro dos Painéis de São Vicente não só para suprir as insuficiências do anterior, datado de 1910, mas também para dar a ver os dez centímetros da obra escondidos por trás da respetiva moldura.
Há, igualmente, uma conceção do que deve ser o MNAA: “Um museu é um discurso, um pensamento, sempre objetualizado, feito pelas obras de arte que tem para mostrar. O que é que o MNAA pode fazer que os outros museus não fazem? Pode reequacionar temas essenciais para a cultural visual do país.”
E colidindo diretamente com o tipo de discurso do antecessor, Joaquim Caetano acrescenta: “Não me interessa ter um museu particularmente sexy no debate contemporâneo e não cumprir a função essencial em relação à sociedade atual e à vindoura que é a preservação deste espólio.”
Um bom exemplo do que poderá vir a ser o museu sob a sua gestão reside na exposição prevista para o próximo ano sobre Guerreiros e Mártires: “Em 2020 faz 800 anos que foram martirizados cinco italianos que passaram por Portugal e foram depois, muito por vontade sua, deixar-se decapitar em Marrocos por um personagem que ainda é mítico na cultura popular portuguesa, o Miramolim.
Foram os primeiros em que o martírio deixou de estar dependente dos pagãos e passou a estar dos árabes. Surgem numa sociedade de confronto, de dupla jihad: de cruzada islâmica, dos almóadas e dos almorávidas, contra nós, e de cruzada nossa contra eles em dois territórios, a Península Ibérica e Marrocos, que tinham passado quase meio milénio em grande confluência e apenas com alguns pequenos confrontos.
Um  tema que parece religioso apenas é socialmente relevante porque hoje estamos numa sociedade igualmente de confronto; e vamos buscar um caso que produziu imensa arte em Portugal. Como é que se dá a construção desse inimigo mental de carácter perene que são os árabes na sociedade ocidental? Na primeira fase, o cristianismo tem como inimigo a sociedade antiga, a dos romanos, depois há uma estratégia de apropriação dessa comunidade e só mais tarde, na sequência da captura dos lugares santos pelo islão, é que os muçulmanos se vão tornando o inimigo natural da cristandade.”
Relevando a falta de recursos humanos, Caetano distingue-se de Pimentel por dar muito mais importância a conservadores, cuja formação entre bolseiros do FCIT se torna prioritária do que dos vigilantes, cujo défice obriga a fechar salas de exposição. E, mostrando uma humildade, que nada tem a ver com a jactância de quem substituiu enjeita a questão de se saber qual é o museu mais importante do país: “Os museus são pouco comparáveis, vivem de uma identidade dada pelas coleções. O museu mais  importante sobre azulejo em Portugal é o Museu Nacional do Azulejo, o mais importante sobre os coches é o Museu Nacional dos Coches. O MNAA foi, de facto, o primeiro, e daqui nasceram muitos outros museus, mas o que lhe dá a particularidade é ser o museu enciclopédico, se quisermos, da identidade nacional.”
A impressão dada por Joaquim Caetano nesta entrevista é a oposta a uma divertida frase de Groucho Marx, que lhe vem a talhe de foice durante a entrevista: “Não falemos mais de mim, falemos agora de si: o que é que você pensa de mim?”
Uma frase assassina facilmente associável a António Filipe Pimentel, que não pode queixar-se de, nesta entrevista, ser explicitamente maltratado. Caetano consegue ser, nesse aspeto, bastante elegante para com quem viu, sob a sua direção, o número de visitantes do museu declinar significativamente no último ano.

(S) As intemporais personagens românticas e fatais do século XIX


No século XIX a ópera converteu-se num espetáculo popular, que se exportava mundialmente e mostrava como as mais modestas condições de vida podiam suscitar intrigas dramáticas, que interessassem os seus apreciadores.
Atentos às alterações sociais do seu tempo, aos escritores e aos compositores não  passava despercebida a acelerada movimentação de um fluxo ininterrupto de camponeses para as cidades, onde proletarizavam-se nas fábricas ou, no caso de muitas das mulheres, acabavam por se prostituir. Numa sociedade em que o sistema de trocas era definitivamente ultrapassado pela primazia do dinheiro, que tudo comprava ou vendia, a exploração  denunciada por Marx e Engels ganhava contornos particularmente gritantes. E, porque o Romantismo e o Realismo se mesclavam até este dar o outro como obsolescente, a tuberculose servia de elo comum, não só demonstrando quanto a beleza e a própria vida poderiam mostrar-se efémeras, mas também constituindo argumento de denúncia da miséria dos mais desvalidos.
Foi nesse contexto, que surgiram três grandes personagens femininos - Carmen, Violetta e Mimi - que não só contribuíram para operarem avanços na emancipação feminina, mas continuam a ser papéis muito desejados pelas sucessivas gerações de divas, que se vão sucedendo nos principais palcos europeus e americanos. Todas elas comungaram a prévia existência como personagens literárias através das quais os seus criadores verteram para o papel pessoas realmente existentes.  A Violetta da «Traviata» foi uma cortesã, que Alexandre Dumas (filho) amou quando a tuberculose estava em vias de lhe causar precoce passamento.  «A Dama das Camélias» constituiu a sua tentativa de a imortalizar.  A Mimi da «La Bohème» de Puccini foi a transposição para a ópera da amante do escritor Henry Murger, que a tomara por modelo do seu romance «Scênes de la Vie Bohême». Carmen foi uma cigana, que trabalhara efetivamente na indústria tabaqueira de Sevilha e a quem o amante matara numa crise de ciúmes. A história, contada a Prosper Mérimée, logo foi por ele ficcionada no papel, mas seria Georges Bizet a dar-lhe a dimensão épica, que lhe associamos.
Os sucessos literários foram mitigados só na Ópera ganhando expressão a força de carácter dessas mulheres condenadas a trágicos desenlaces. Rompendo com séculos de subserviência feminina elas reivindicavam o direito de amarem quem queriam, mesmo que delas desmerecessem os amantes, ora por serem burgueses poltrões, ora por lhes exigirem mais do que elas quereriam oferecer-lhes.
Ao chegar-se à beira do século XX as mulheres começavam a reivindicar direitos, nomeadamente o de votarem na eleição de governantes, que sempre lhos haviam negado. Talvez seja esse um dos fatores, que justificam a intemporalidade das três personagens novecentistas: mesmo sofrendo com os efeitos da sua determinação elas sabem muito bem o que querem e estão decididas a consegui-lo.

sexta-feira, agosto 02, 2019

(DIM) «Fritz Lang - o Demónio dentro de nós» de Gordian Maugg


Em 1931 Fritz Lang viu-se num angustiado vazio criativo. «Metropolis» e «A Mulher na Lua» tinham sido enormes êxitos comerciais mas havia quem duvidasse da sua capacidade em transitar do cinema mudo para o sonoro. A relação conjugal com Thea van Harbou deixara de fazer sentido muito embora o casal fosse celebrado na Alemanha pré-nazi como exemplo de uma dupla inquebrantável, ele como realizador, ela como argumentista.
Cansado das noites em que apanhava um táxi e ia consolar-se junto de prostitutas, possuindo-as com violência, encontra nos jornais o tema aliciante para um novo filme. É que Dusseldorf andava então assombrada por um assassino, que raptava, violava e assassinava, crianças e mulheres, sem que a polícia conseguisse identificar o criminoso. Quando Lang chegou à cidade renana a insegurança coletiva era tremenda dando gás às milícias das SA, que desfilavam nas ruas a entoarem canções adaptadas das que ele ouvira à ama judia quando era criança.
Conseguindo a complacência do chefe da polícia local, que o conhecia da altura do suspeito suicídio da primeira mulher, Lang intromete-se na investigação e procura matéria passível de ser utilizada no próximo projeto. E, sem que o espere, uma testemunha é quase sósia de Lisa, essa enfermeira, que dele cuidara, quando fora parar ao hospital durante um combate na Primeira Guerra Mundial e com quem casara, fazendo-a sofrer com as suas infidelidades.
O que ficaria conhecido como o Vampiro de Dusseldorf viria a ser denunciado pela própria mulher que, aproveitara para dele se livrar e receber a vultuosa recompensa oferecida pelas autoridades. 
Antecipando-se a Truman Capote que, um quarto de século depois, também procuraria dois assassinos para escrever o seu »A Sangue Frio», Fritz visita Peter Kurten na cadeia procurando-lhe detetar as razões para se ter convertido num monstro, que todos querem ver rapidamente julgado e executado. E nele encontra maiores similitudes consigo mesmo, do que gostaria de comprovar: ambos haviam conhecido infâncias problemáticas, com pais violentos, que os agrediam e humilhavam. E também a indiferença perante quem deveriam sentir compaixão: a pretexto de concluir a rodagem de um filme Lang escusara-se a acompanhar os últimos momentos de vida da mãe, apesar de por ela ter sido muito amado.
Para o realizador o encontro com Peter equivale a uma catarse dos seus próprios demónios anteriores, expressando-o na obra-prima que logo conclui: «Matou» seria o seu primeiro filme sonoro e testemunharia a criação das condições para que os nazis não tardassem a apossar-se do poder. Quando isso aconteceu o casamento com Thea terminou: apesar de Goebbels lhe acenar com a direção de toda a produção alemã, ele escapou-se para o exílio, prosseguindo o percurso criativo em Hollywood, de que se tornou um dos melhores cultores do filme negro. Quanto a Thea ocorreu o contrário: filiando-se no partido nazi ainda em 1932 foi sua fiel seguidora, nunca se lhe conhecendo arrependimento por nele ter acreditado.
O filme de Gordian Maugg não chega a essa fase, ficando-se nesse ano de 1931 em que já muito do que viria a suceder se definia...

(VOL) A imortalidade, o ciúme e o que é, ou não, Arte?


1. Foi curiosa a tentação dos românticos pelo mito de Fausto. Em 1829 Goethe deu-lhe expressão literária e, trinta anos depois, Gounod, fez dele uma das mais importantes óperas do século XIX. Porquê essa obsessão pela imortalidade, que Mary Shelley já explorara numa abordagem fantástica? Talvez a angústia de um tempo, que se escapava, sobretudo quando abreviado pelas muitas doenças incuráveis nessa época. Hoje em dia, com a esperança de vida a prolongar-se muito para além do que significa uma vida usufruída com qualidade, faz sentido essa ânsia de um pacto pelo qual se lhe inibam os constrangimentos biológicos?
Pessoalmente bem me poderia vir o Demo bater à porta, que manteria a determinação com que ponho a milhas as Testemunhas de Jeová ou os mórmons, que se arriscam a incomodar-me. Tendo a fatal ampulheta bem mais preenchida na parte inferior do que na que alberga o fluxo remanescente de futuro que me cabe não veria qualquer vantagem em virá-la ao contrário e pô-la a reiniciar - quase do zero! - a contagem decrescente para a morte.
2. Outra ópera, que por estes dias me tem passado diante dos olhos, é a «Tosca» de Puccini. Nunca retivera a informação de se ter baseado numa peça encomendada por Sarah Bernhardt para uma das suas carismáticas interpretações teatrais. No final do século XIX a grande atriz não encontrava reportório à medida de grandes papéis dramáticos, que lhe dessem oportunidade para revelar o afamado talento e cuidava de encomendá-los a dramaturgos caídos nas suas graças.
À distância de quase cento e vinte anos a história roça o ridículo tão obsessivamente ciumenta é caracterizada a protagonista e, por isso mesmo, responsável pela morte de um revolucionário e do amante, que cuidava de o ajudar a esconder-se. Mas quem quer saber da inverosimilhança da intriga, quando a música é brilhante e sobram duas grandes árias para facilmente a recordarmos?
3. A história de Han van Meegeren obriga-nos a repensar o que valoriza uma obra de arte. Se na ópera de Puccini ela era incontestável, mesmo se nos obrigássemos a abstrair do conteúdo do libreto, nos quadros pintados pelo falsário holandês, que convenceram vários colecionadores a adquiri-los como se fossem verdadeiros Vermeer, pôs-se uma questão pertinente: porque é que num dia valiam milhões por supostamente corresponderem a um período da vida do pintor de que se haviam perdido todas as obras e coincidindo com a sua provável estadia em Itália, enquanto no seguinte, esclarecida a identidade de quem, efetivamente, os pintara, nada passavam a valer? Mesmo que nada neles tenha mudado quanto ao seu aspeto...
O que definimos como arte? O que esteticamente nela nos impressiona ou o que é validado pelo mercado e só é reconhecido se corresponder aos cânones aprovados pelos críticos, historiadores ou curadores?
Na realidade não faltou quem achasse as obras de Meegeren mais interessantes do que as do próprio Vermeer a quem supostamente começara por ser atribuída a sua autoria...

(DL) Um inesperado encontro com a mulher que chora


Há acasos felizes. Pelo menos foi o que pôde concluir a escritora Brigitte Benkemoun quando perdeu um caderno de estimação e o procurou substituir por outro, idêntico na cor e encadernação, encontrado por acaso num daqueles sites da internet em que se adquirem produtos em segunda mão.
Ao receber a encomenda ficou atónita com o que descobriu no seu interior, porque a anterior proprietária servira-se dele para anotar os endereços e os números de contacto dos amigos. E eles eram bem conhecidos, porque integravam a nata dos intelectuais do pós-guerra. Escritores, pintores, escultores, fotógrafos, atores - quem recenseara esses dados teria de ser alguém que tivesse uma notoriedade semelhante. Razão para que Brigitte Benkemoun iniciasse uma investigação digna de Sherlock Holmes, que culminaria com a pretendida solução: o caderno pertencera Dora Maar, aquela que Picasso representara no célebre quadro «A Mulher que Chora».
Acabado de publicar em França, «Je suis le carnet de Dora Maar» dá conta dessa busca em torno de uma personalidade, sobre a qual algo mais se fica a saber a partir do que revela esse caderno.

quinta-feira, agosto 01, 2019

(S) Um Allegro Energico para quem gosta de Brahms

(DL) Uma breve leitura para os dias estivais


As férias de verão servem de alibi para leituras mais ligeiras, sobretudo, se não exigirem duradoura. É o caso do romance de Daniel Kehlmann, que anda pelas cem páginas e nos mergulha num primeiro nível de leitura, que tem a ver com o género fantástico.
Passando férias com a mulher e a filha de quatro anos numa aldeia alpina, o protagonista anseia escrever o argumento para a continuação de um filme, de que assegurara a narrativa anterior. Mas algo de inquietante decorre da permanência naquela casa sobre a qual os aldeãos parecem saber antecedentes, que se escusam a divulgar para além das breves alusões. Sem compreender como o escritor vê alterar-se a geometria das paredes e respetivas divisões ou dá com palavras, que não as por ele escritas, no seu caderno.
Poderia tratar-se de uma história ao jeito das muitas, que Stephen King tem publicado, mas adivinha-se ambição maior, porque começa-se a questionar a fronteira entre a realidade e a imaginação do protagonista, tanto mais que ele revela ambíguas inseguranças sobre a bondade das suas opções de vida.  Entre quem foi, é e pretende vir a ser esse escritor tem na inesperada evolução dos dias a perturbadora revelação do que o possa redefinir.

(DIM) Uma zanga mítica - Truffaut e Godard


Em 1974 François Truffaut ganhou o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro com »A Noite Americana». Meses antes Jean Luc Godard arrasara-o, acusando-o de mentiroso! Este não se coibiu de lhe dar violenta resposta reconhecendo que o filme não correspondia nem à ideia de cinema, nem à ideia de vida, que Godard defendia.
Ficou consumada a rutura entre os dois mais importantes cineastas da Nouvelle Vague apesar de uma cumplicidade, que se forjara em 1947, quando Jean Luc tinha 17 anos e François 15. Amantes de cinema partilhavam sessões contínuas nas salas do Quartier Latin, privilegiando filmes de autores do cinema norte-americano (Hawks, Hitchcock) ou de grandes mestres europeus (Renoir, Rossellini).
Godard nascera numa família da alta sociedade protestante franco-suíça, que vivia nas margens do Lago Leman. Ao invés, Truffaut era parisiense, filho de pai desconhecido e educado pela avó.
O primeiro a entrar como crítico nos «Cahiers du Cinema» foi o suíço, mas o amigo juntou-se-lhe, no ano seguinte aí conhecendo Rohmer, Rivette e Chabrol. Os textos irreverentes dessa geração de jovens cinéfilos muito contribuem para o crescente sucesso da revista.
Em 1954 Truffaut mostrou-se particularmente agressivo para com um certo tipo de cinema, que designou como «qualidade francesa» e fundamentado no primado dos argumentistas, nas rodagens em estúdio e na aparência académica. Assumindo-se como estratega apostado numa espécie de combate permanente contra uma forma envelhecida de cinema, o jovem crítico apostava na sua definitiva superação.
Godard não tinha esse tipo de comportamento: criticava, mas com bem maior discreção. Daí que os textos lhe valham menor notoriedade.
Apoiado pelo sogro, dono da empresa Films de la Carrosse, Truffaut é o primeiro a passar à realização com o quase autobiográfico «Quatrocentos Golpes» (1959), que marca o ponto de partida da Nouvelle Vague. O filme foi aclamado no Festival de Cannes com o Prémio de Melhor Realizador. Aos 28 anos ele via-se capaz de ajudar os amigos dos «Cahiers» a imitarem-no na passagem das páginas da revista para os ecrãs de cinema. Godard foi o primeiro a ser apoiado, rodando «O Acossado» em 1960, estando Truffaut creditado como argumentista. Nele o realizador dá-se ao prazer de fazer tudo quanto até então era considerado tabu: rodar um grandes planos com uma grande angular, fazer um travelling com a câmara na mão a acompanhar os personagens. Queria demonstrar que, em cinema, tudo era permitido.
De súbito formou-se um consenso público e da crítica em torno dos dois realizadores, que constituíam um novo paradigma de liberdade na forma como se expressavam cinematograficamente.
Durante toda a década de 60, de filme em filme, Truffaut e Godard consolidam o prestígio de  cineastas de primeiro plano. Jean-Pierre Léaud, que participou em sete títulos do primeiro e em dez do segundo, constituiu uma espécie de elo de ligação entre universos criativos, que se iam dissemelhando cada vez mais. O que justifica a apreciação de Marin Karmitz, quando assevera que teria gostado de trabalhar com ambos nessa altura, para aprender com um como se contava uma história e com o outro como se a destruía, sendo ambas válidas.
Godard foi derivando para o papel de revolucionário provocador, enquanto Truffaut acomodou-se ao papel de cinéfilo, de Senhor Cinema. Um ganhou a imagem de «bad boy«, cabendo ao outro o de bonzinho. Mas a amizade entre os dois ainda subsistia levando-os a partilhar combates como o que os uniu na defesa de Henri Langlois, quando o governo o demitiu de diretor da Cinemateca Francesa. André Malraux, ministro de De Gaulle, acabou por reconhecer a derrota perante a dimensão do movimento de contestação lançado pelos dois cineastas, readmitindo Langlois ao fim de poucas semanas.
Seguiu-se o Maio 68, que não os deixou indiferentes concertando-os no derradeiro combate em que partilharam a trincheira no Festival de Cannes, que obrigaram a suspender. Mas a divergência entre ambos aumentou a partir daí: Truffaut não mudou nada no seu cinema, prosseguindo no tipo de filmes, que vinha rodando até aí, como se pode constatar com «A Sereia do Mississipi» ou « O Menino Selvagem». Pelo contrário Godard afiançou haver um cinema antes e pós-maio 68 participando na criação do Grupo Dziga Vertov para rodar projetos abertamente políticos e, em que a identidade do realizador, se diluía na de todos os elementos da equipa, considerados corresponsáveis com idêntica importância. As opressões de todo o tipo e onde quer que se verificassem passaram a constituir o objetivo do que filmava.
Na condição de burguês abastado Truffaut passou a considerar que não lhe interessarem os filmes de Godard, sentimento correspondido por este, que erigiu o ex-amigo como símbolo do que mais execrava na sociedade capitalista.
Em 1973 os dois já se ignoravam há cinco anos, quando ocorreu a estreia de «A Noite Americana» sobre a rodagem de um filme, do primeiro ao último dia de trabalho de uma mesma equipa de atores e de técnicos. Ora, Truffaut, em vez de representar o modo como trabalhava, criou uma fantasia sobre o que teria sido o cinema do passado entretanto abandonado. Havia uma espécie de nostalgia sobre um cinema perdido algures numa idade dourada em que a graça e inocência ainda não tinham desaparecido. Godard, pelo contrário, porfiava na ideia de avançar para um novo cinema, que substituísse o que entendia como definitivamente ultrapassado. E sentiu repulsa pela traição de Truffaut a um tipo de cinema, que em tempos repudiara.
A resposta deste é consensualmente tida como brilhante, enquanto peça epistolográfica, mas de uma extrema violência na forma como pretendeu magoar o ex-amigo, tocando-o no que lhe era mais íntimo. Se já era evidente que existiam duas formas opostas de criar cinema na França de então, ela ainda mais se vincou, mesmo quando ambos trataram do mesmo tema, a infância, com «L’Argent de Poche» de Truffaut e «France/Tour/Détour/Deux Enfants» de Godard.
Em 1980 aconteceu o último grande duelo entre os dois: Truffaut rodou «O Último Metro» enquanto Godard surgia com «Sauve qui peut (la Vie)». Godard revelava-se cada vez mais experimental, aprofundando a relação entre o cinema e as artes plásticas. Truffaut, por seu lado, assinava o seu último grande filme, aquele que mais o aproximava de Renoir. Na cerimónia dos Césares, os dois viram-se nomeados para o prémio de melhor realizador e foi Truffaut a ganhá-lo. Jean Luc ainda faz o gesto de cumprimentar o vencedor, mas este escusou-se a corresponder. Foi a última vez que estiveram próximos um do outro, porque o cancro logo cuidaria de acelerar o encontro de François com o seu derradeiro ato.